Marcelo Almeida do Nascimento

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Neste blog você encontrará os textos originais dos meus projetos literários, peças teatrais, roteiros e apresentação de jogos de tabuleiro. osbatutas@yahoo.com.br

Escrever para quê?

O título acima faz parte de uma discussão que termina na seguinte conclusão: Ler para quê? Há muitos anos tenho desenvolvido minha teoria a respeito dos hábitos da leitura e do gosto pela literatura. Por isso estou voltando a usar este blog para discutir um pouquinho sobre a falta de leitura e o comprometimento disso na escrita. Afinal, para que escrever se não há ninguém para ler.



segunda-feira, 26 de abril de 2010

E COMO A POLÍCIA FUNCIONA

Desde as últimas ondas de ataques, pânico e violência que ocorreram na cidade, a Polícia de São Paulo ganhou rótulos contundentes, desde ineficiente até falida. Mas, ao mesmo tempo, conseguiu reunir um quê de respeito entre as mesmas pessoas que a viam como um espectro fiel da inoperância do Estado dentro de uma de suas atribuições mais importantes: a de defender o cidadão.

Assim, mesclando heroicidade e vileza, a Polícia renasceu aos olhos da opinião pública como uma instituição da qual dependemos para nos proteger e nos defender dos criminosos... Embora na maioria das vezes isso não aconteça. Por isso, nada mais prático do que entender basicamente como funciona essa Instituição. Acreditem! A Policia da paulicéia desvairada do poeta realmente funciona... talvez não como devesse... Mas funciona.

A primeira coisa que se deve saber é que não existe uma só Polícia em São Paulo, e sim duas. Pode parecer absurdo, mas muita gente confunde Polícia Militar com a Polícia Civil, e acham que ambas são a mesma coisa, quando na verdade estão divididas por um abismo enorme chamado atribuição de função.

Para entender bem a diferença, basta se lembrar do seguinte: A Polícia Militar é preventiva, ou seja, ela existe para inibir que um crime seja cometido. Já a Polícia Civil é investigativa, atua somente quando um crime ocorre e procura identificar o culpado.

Segundo ponto importante, mas muito importante mesmo: A Polícia de São Paulo não é igual a Polícia de outros países, muito menos aquelas da televisão Esqueça CSI, Lei e Ordem, Crossing Jordan, Monk e as reportagens do Discovery Chanel e National Geographic. Como diz a letra de uma música, “aqui embaixo as leis são diferentes”.

Embora as técnicas de investigação, o aparelhamento tecnológico e as últimas novidades no campo da ciência forense sejam amplamente conhecidas por todos nós, inclusive pela Polícia, em São Paulo, e em todo o Brasil, não temos o mesmo aparato técnico e pessoal visto através da televisão.

Mas nem por isso a Polícia deixa de encontrar e prender os criminosos.

Certa vez um ladrão de bancos foi preso em uma Delegacia de São Paulo. Com várias passagens pela polícia por crimes diversos, ele se recusava em fornecer o nome de seus outros comparsas e onde o dinheiro roubado estava escondido.

Apesar da “pressão” (não entendam por agressão) exercida pelos investigadores e pelo Delegado, o assaltante se recusava a falar. Mentia. Falava uma coisa. Depois desmentia. Deixou todos na sala cansados e, ao mesmo tempo, aptos e desejosos em lhe aplicar a “psicologia do toque” (agora sim entendam por agressão)... O que, logicamente, é proibido.

Eis que um investigador já “antigão” (é assim que chamam os mais velhos), que até então assistia a tudo de um canto da sala com cara de poucos amigos, levantou-se e andou em direção ao acusado acendendo um cigarro. Em passos vagarosos, ele se aproximou do acusado com o cigarro aceso. Após dar uma bela tragada, envolto pela fumaça, ele apontou a pequena porção de fumo enrolada num papel para o ladrão e perguntou, com uma voz calma e serena e ao mesmo tempo sinistra: “Quer?”

Não sei ao certo o que o assaltante entendeu. O Policial jura que quis apenas lhe oferecer um cigarro. Mas o ladrão, com os olhos esbugalhados, suando por todos os poros e tremendo na cadeira, acabou entregando todos seus comparsas, onde o dinheiro estava escondido e outros crimes dos quais nem era acusado... coisas que nem o usando muita porrada ele revelaria.

Uma tática de investigação simples e eficiente. Geralmente é isso que se busca nas investigações. Mesmo porque, a Polícia funciona de uma forma lógica e ordeira. Não pense em chegar no Distrito e pedir para fazer um Boletim de Ocorrência só porque você quer dar um susto em alguém. Muito pelo contrário. Você deve estar muito bem preparado para explicar o que aconteceu, como, aonde, com quem e por quê. Nunca se esqueça disso. Pois tem gente que esquece.

Era quase três horas da manhã quando uma família rompeu porta adentro na Delegacia. Uma mulher toda de preto e com cara de ofendida, acompanhada por uma garota já maior de idade, com calça de cintura baixa, salto agulha,bustiê e cara de santa do pau-oco, juntas com um pai cabisbaixo, visivelmente contrariado por estar ali, chegaram querendo “abrir” um B.O.

A ocorrência: Estupro. A história: A menina foi até uma festa, onde encontrou seu ex-namorado que “abusou dela”. A Delegada de plantão logo desconfiou e perguntou quem mais estava na festa. Segundo a garota, apenas ela e cinco outros amigos. Sim. Amigos, no masculino.

A Delegada perguntou o que tinha na festa. Bebida, a garota respondeu. Alcoólica. Da qual bebeu apenas dois ou três golinhos. E depois? Sem pudor, a garota revelou que o clima esquentou e acabou rolando uma maior intimidade entre os amigos e ela.
“ E você deu pra todo mundo?”, perguntou a Delegada para uma garota já enrubescida, que respondeu apenas com a cabeça e arrematou dizendo que ela quis dar pra todo mundo sim, mas como estava meio bêbada não viu que o seu ex-namorado, para quem ela não queria dar, havia chegado e participado da festinha também.

Resultado: Nada de Boletim de Ocorrência. Segundo a Delegada, não era crime afogar o ganso se a cerca estava aberta. Além disso, ela era maior de idade. Deveria, pelo menos, saber o que estava fazendo. A mãe deixou a Delegacia ainda ultrajada. O pai agradeceu aliviado por não escancarar ainda mais o que a filha já havia escancarado. E a garota saiu da Delegacia após deixar o número do seu celular com um investigador.

Absoluta seqüência lógica: Onde, como, quando, quem e por quê. Mas não se assustem. Apesar de perseguir essa linha, a nossa Polícia é tão eficiente que, às vezes, consegue subverter até mesmo a lógica. E aí estamos falando do famoso “jeitinho”, ou, traduzindo para uma expressão mais conhecida, “não tem como deixar isso prá lá que eu te dou um cafezinho?”

Certa vez o dono de uma padaria foi preso pela Polícia Militar dirigindo embriagado. Levado ao D.P., pediu para conversar com o Delegado, que o recebeu sozinho em sua sala. Conversa vai, conversa vem, o comerciante acabou usando a expressão mais conhecida acima escrita. E como fruta podre tem em toda árvore madura, o Delegado se interessou pela oferta.

Perguntou se ele tinha uma “nota”. O dono da padaria não entendeu O Delegado resolveu simplificar. Perguntou se ele tinha uma "corrida", uma "gasolina", um "qualquer", um "cascalho", um "cruzeiro", uma "mussarela". O dono da padaria, que não era português, fez um sinal que entendeu. Com os dedos de uma das mãos estendidas, O Delegado fez o sinal. Cinco? Perguntou o padeiro. O Delegado confirmou. A mussarela então fica em cinco? Perguntou novamente o padeiro piscando um olho. O Delegado confirmou de novo, e ele saiu da Delegacia todo contente, prometendo voltar para acertar o combinado.

Minutos depois, o comerciante chamou pelo Delegado no estacionamento do D.P. Disfarçando, o Delegado foi até ele. Nervoso, o dono da padaria levou a Autoridade até o porta-malas do seu veículo e lhe disse: Eu trouxe até um pouco mais. Sabe como é, né? A situação ta difícil pra todo mundo, mas como você me ajudou, eu vou te ajudar também.

Enquanto o Delegado já esfregava as mãos, o comerciante abriu a porta e tirou uma enorme e suculenta peça de mussarela de sete quilos. Incrédulo com a situação, o Delegado ficou segurando a sua mussarela com as duas mãos, enquanto o comerciante foi embora feliz e satisfeito por ter se dado bem com a Polícia.

Mas não se enganem. Isto é um fato atípico. Geralmente, se algum Policial corrupto fecha um acordo com você, tenha certeza de uma coisa. Ele vai ser o primeiro a desfazer o acordo e, se algo sair errado, vai incrimina-lo com certeza.

Basicamente é isso. Como disse José Saramago uma vez, a Polícia existe para investigar delitos, não para desvendar mistérios. Se você acha que as situações acima são insólitas e não passam de ficção, faço um convite a você. Visite uma Delegacia. Sim. Isso mesmo. Peça autorização para ficar ali, não como vítima, mas como observador.

E aí você irá entender melhor porque, apesar do próprio povo, a Polícia funciona.

domingo, 25 de abril de 2010

Não mais que um - Texto de exercício

Em 1990, a escritora Hilda Hislt declarou-se a respeito dos leitores, críticos e editores que rotulavam sua obra como hermética e inatingível do ponto de vista comercial: “Eu me sinto uma tábua etrusca”, disse ela ao romper as amarras sociais de boa moça e enveredar por uma literatura que chocou a crítica e leitores mais comportados.
Hilda aprofundou-se no universo da consciência humana tanto explicada por Freud e que todos nós, por moralismo ou simplesmente por hipocrisia, deitamos de lado e pejorativamente classificamos como pornográfico.
A hercúlea coragem de Hilda a ascendeu a um sucesso consensual entre crítica e público. Para aqueles que não a entendiam, sua obra passou a ser visceral, quase um mito, enquanto que aqueles que a criticavam ou a apunhalaram de vez ou reconheceram a sua tarimba literária.
A atitude libertária de Hilda me levou a uma reflexão acerca de quem seria o leitor para meus escritos. Frente aos meus dissabores de crítica e nenhuma bem-aventurança comercial, pego-me a pensar se me encontro no mesmo patamar que ela, ou seja, se estou escrevendo em iídiche e não atendendo a ânsia dos leitores brasileiros, ou se sou um ser estrelado, com capacidade de criação surreal, tão a frente do meu tempo que não sou reconhecido pelos meus iguais.
Confesso que me intriga, e me causa até um certo pânico, reconhecer ou creditar uma característica, por menor que seja, a quem leria um texto meu. Ou melhor, de quem gostasse de ler um texto meu, mesmo porque um texto escrito é como prostituta de bordel: Se a forma e o visual interessarem, se tiver um assunto interessante, pode-se acreditar que vale a pena passar alguns minutos em sua companhia... e pagar para ver, literalmente.
Devo fazer o que o povo quer ou o que eu quero? Sabemos que atualmente a voz do povo não é exatamente a voz de Deus. Hoje, os vícios, as idéias, as opiniões, a alegria e a tristeza de uma nação são comandados por grandes mídias que ampliam seus tentáculos para todos os níveis da sociedade, focando sempre uma única idéia: Comprar, comprar e comprar, mais e mais. Um capitalismo selvagem ao extremo.
E eu aqui. Tentando definir um tipo de leitor para textos que nascem de uma idéia particular, de uma visão angular sobre um fato, um gesto, um gosto, um pecado; ganham pernas, mãos e braços, e tentam agarrar apaixonadamente quem estiver a sua frente. Mas apesar de ser tão grande é tão igualmente frágil, solitário e vergonhoso, e ao primeiro sinal de insatisfação desaba para dentro de uma gaveta fria e escura, o purgatório para quem tentou ser tudo num universo onde tudo é relativo.
E aí esta o dilema: Para quem eu escrevo? Para aquele que lê por gosto ou lê por esforço? Para aquele que é instruído e criativo ou é instruído para criar? Para aquele que me compreende ou não é compreendido? Não tenho e não sei quem seria o meu leitor.
Na minha mais pueril concepção sobre ser um escritor, acreditava que um livro meu seria lido por todas as pessoas do mundo. Agora eu entendo que isso jamais acontecerá. Isso porque eu ainda me encontro na mesma encruzilhada de Hilda Hislt: Metade quer ser feliz, fazer lançamento na Livraria Cultura e ser traduzido em doze idiomas; mas a outra metade que ser mais feliz ainda, encontrar um leitor, talvez apenas um mesmo, que me abra um sorriso e diga sinceramente: Gostei do que você escreveu!

Fotos e Saudades

Lembrar dos tempos idos é lugar comum em comemorações. Ainda mais quando temos um grande passado para comemorar. Como os 450 anos de São Paulo. Uma história gloriosa e edificante, criada por pessoas de todas as partes do Brasil e do mundo que chegaram a esta cidade, tiveram um arrebatamento amoroso por esta terra, por essa garoa, e acabaram ajudando a construir a nossa cidade de São Paulo.
A cidade será cantada em verso e prosa, suas belezas e riquezas serão enaltecidas, declamações amorosas e votos de um futuro esplêndido serão entoados por toda a cidade. E, invariavelmente, veremos e reveremos fotos.
Fotos antigas, a maioria do início do século passado, retratando particularidades da cidade. Sua geografia naqueles idos, sua gente, suas festas, seus casarios, suas personalidades.
Também observaremos fotos atuais. Da avenida Paulista de hoje, contrastando com a Avenida Paulista de chão de terra e iluminação a lampião de gás de tempos atrás. Do Viaduto do Chá, reinando soberano sob um Vale do Anhangabaú arborizado e urbanizado, com lâmpadas de mercúrio a iluminá-lo durante a noite, em contraste com aquele perdido em meio a um vale cruzado por ruas, carros e pessoas há cinqüenta, sessenta anos atrás.
E ouviremos a palavra saudade. Saudade de um tempo que não volta mais, saudade de uma realidade diferente e adversa da que temos hoje, saudades de uma realidade paulistana evocada sempre a partir das maravilhas dos tempos passados.
Nos mais saudosos paulistanos, seja de alma ou de coração, tais recordações inflam o peito. Fazem brotar no rosto um sorriso plácido, abrilhantam os olhos e faz murmurar entre os lábios a célebre frase de efeito que conhecemos para deixar registrado nossa emoção contemplativa de épocas passadas: Ah, como eram bons aqueles tempos!
Será impossível não falar das épocas passadas nessas comemorações dos 450 anos da cidade. No entanto, serão apenas as épocas gloriosas, aquelas que fizeram jus a um foto, a uma recordação maior, que serão sempre rememorados, não se fazendo menção aos problemas sofridos, e superados, daquele período específico.
O que parece que estas pessoas saudosas de uma São Paulo de tempos atrás não percebem é que a cidade não é ruim nem boa. São Paulo não suporta rotulações, porque é mais que um espaço geográfico densamente povoado. A nossa cidade é puro movimento.
Aqui há um mundo em eterna oscilação e expansão. Sua mobilidade consiste num contínuo estado de mudança entre o ser e o estar de suas ruas, dos seus prédios, de suas indústrias, de suas pessoas. Não é um lugar melhor nem pior do que há 450 anos atrás. Mas é sim, a cada momento, a cada segundo, a cada instante, diferente e surpreendente.
Diariamente, São Paulo perde e ganha muitas coisas. Faz parte da ordem natural do desenvolvimento. Por força do crescimento perdemos um rio caudaloso e pesqueiro como o Tietê. As chácaras do Pacaembu, as fazendas do Morumbi. Não podemos mais ir de trem até o Jaçanã, tampouco pescar nos lagos da bacia do Aricanduva. Fazer piqueniques nos bosques da Saúde ou assistir a uma tourada onde atualmente é a Praça da República.
Mas isto não significa que nossa cidade esta fadada à dureza de um concreto frio e insensível, aos vapores ojerizantes de sua poluição, ao descambo de seu crescimento desordenado e do seu trânsito caótico.
Ainda podemos sentir uma brisa refrescante ao final do dia andando pelos parques espalhados da cidade. Esquecer do trânsito e usufruir a modernidade do metrô para chegarmos aos quatro pontos da cidade em questão de minutos. Esquecer um pouco do trabalho do dia-a-dia ao observamos o pôr-do-sol no Alto de Pinheiros. Regorgijar-nos nas festas de San Genaro na Mooca, ou na de Nossa Senhora Achiropita no Bixiga.
Podemos curtir noites aprazíveis circulando pelos teatros espalhados pela Bela Vista e os cinemas existentes ao longo da Avenida Paulista. Ficar na dúvida em qual pizzaria jantar, ou em que Shopping fazer compras. Curtir a vida boêmia da Vila Madalena, o frenesi da moçada da Vila Olímpia e os shows e o talento do pessoal da periferia da Zona Leste e Zona Sul.
São tempos outros. Tempos reais e distantes daqueles em que automóveis raramente ocupavam as ruas, bondes tracionados a burros e depois à energia elétrica cortavam a cidade, o Teatro Municipal era freqüentado apenas pela elite burguesa e a palavra pressa ainda não fazia parte do cotidiano da nossa cidade.
E todas essas mudanças só foram possíveis porque São Paulo, de uma terra santa no nome e povoada a princípio por gente também santa, acabou sendo ocupada por gente guerreira e batalhadora, lutadora e incansável em perseguir seus objetivos. Acabou não sendo uma cidade só de Paulos ou de Anchietas. Mas de Manuéis, Josés, Marias, Pedros, Anas, Eikos, Henrys, Torstens, Juans, o mundo inteiro. Uma cidade que não se limita a alguns quilômetros de extensão, mas que se expande dentro de si mesma para o resto do mundo.
Sinto orgulho do passado da minha cidade. Honra-me ver São Paulo como ela é atualmente e ter o prazer em atuar em seu eterno processo de mudança. Eu amo o que esta cidade foi, o que ela é e o que ela virá a ser daqui a cem, duzentos, quatrocentos e cinqüenta anos. Seja através de fotos. Seja através desse sentimento único que é viver em São Paulo.

Teoria das Batatas

E NÓS, AS BATATAS...


“ Não eram comedores de batata
Como supôs o holandês

Nem comedores de mandioca

Vivem eles mesmos na terra
Desenraizados

Mostram suas cascas sujas e ásperas (...) “

Eliane Machado



Talvez fosse possível, e Shakespeare bem que poderia conceber, numa tarde ensolarada de domingo, almoçando solitariamente em um Macdonald´s de um grande Shopping Center mais próximo de sua residência, durante a devoração de um Big Mac acompanhado de batatas fritas e Coca-Cola (diet para não engordar), a seguinte premissa com toda a naturalidade e inteligência que lhe eram peculiares: Há mais semelhanças entre nós e as batatas do que supõe a nossa vã consciência.

É mais certo que não. Mas também não é impossível imaginar.

Nós, homens, seres belos, animados e racionais, sempre temos a tendência natural de abolirmos ou repugnarmos qualquer semelhança ou comparação com os outros elementos naturais da Terra, ou seja, os seres animais, vegetais e minerais. Basta puxar pela memória e lembrar o quanto custou para o mundo aceitar a idéia de que o homem veio do macaco e não de Deus. Não que eu acredite que o homem veio da batata. Quando você estiver comendo um saco de batatas fritas não se preocupe, pois não estarás cometendo batatofagia nem desejando a mulher do próximo (no caso, a do Seu Batata). Mas a encare de frente e reflita: Você vai ver que nossa vida tem muitas semelhanças com a vida útil de uma batata tanto quanto a certeza de que evoluímos a partir do macaco.

Esta é a idéia. Nossa vida é igual a vida de uma batata, e tal como tem um ciclo de vida bastante parecido dentro do nosso bio sistema capitalista selvagem amplamente globalizado.

Senão vejamos. Nós, homens, quando nascemos, não temos ainda aquela consciência crítica e auto-sustentável dos nossos semelhantes. Nascemos sem o grau de consciência descrito por Rousseau e, portanto, não nos relacionamos no mesmo nível com os outros seres. Vivemos na dependência dos próximos a nós. E como já foi comprovado cientificamente, nossa personalidade e vida futura dependem muito da quantidade, e qualidade, de afeto, carinho, atenção e educação que recebemos na nossa primeira fase de vida. Nascemos com uma casca - o que impediria, numa alusão à bíblia, a inserção do pecado em nossas vidas, e vimos ao mundo de maneira imaculada, embora pura; imperfeitos, inaptos a viver nesta nossa sociedade. Sujos com o sangue e excrementos da nossa própria mãe.

A mesma coisa ocorre com a batata. Como todos os vegetais tubérculos, precisam de um solo propício para se desenvolverem, cuidados com sua plantação e boas condições para se desenvolver e vir a crescer, até ser arrancada das entranhas da terra (a mãe terra) e se integrar a sua sociedade, estando também ainda com sua casca suja e imprópria para consumo, ou melhor, integração social.

A casca que circunda o homem logo após o seu nascimento vai sendo limpa, aparada, cuidada, para que logo ele possa ser incluído em nossa sociedade. Com as batatas, o análogo processo de beneficiamento visa coloca-las dentro de um saco. E enquanto as batatas são selecionadas e lavadas, nós, homens, recebemos esse mesmo tratamento através da escola, religião, família, que nos introjeta valores morais da nossa sociedade, destacando-nos entre os muitos outros iguais a nós. Enquanto as batatas são ensacadas, os homens são inseridos em divisões estamentárias sociais e econômicas praticamente intransponíveis que, por serem tão rígidas, assim como ocorre com as batatas, salvo por sorte econômica, política ou erro do produtor, jamais acabam se misturando.

O futuro, tanto para os homens quanto para as batatas, é a sociedade de consumo. Ambos serão comidos, deglutidos, dilacerados, sempre de acordo com sua posição social ou preparação para o consumo. Tal como os homens, as batatas também são discriminadas para serem aceitas em uma determinada feira, empresa, restaurante, supermercado ou na escola. As batatas, assim como os homens, também são divididas em várias partes apenas para realizarem uma única tarefa ou darem um único prazer. Para tanto, umas são cortados em forma de palitos e apresentadas junto com hamburgueres, outras são fatiadas em rodelas e acondicionadas em sacos brilhantes, tantas são trituradas, amassadas, ou têm retirado apenas sua força vital (a fé-cula) para dar sustento ou gosto para outros pratos, outros prazeres, outras apresentações, acabando por nunca se aterem ao fato de que são capazes de realizar muitas outras coisas ao contrário do que lhe ordenam e instruem a fazer.

A divisão do eu da batata e do eu do homem é essencial para o total aproveitamento de ambos pela sociedade.

É raro o homem que mantém - e aplica - todos os seus atributos e considerações morais e sociais, conquistados, ensinados ou refletidos ao longo de sua vida. É necessário, sempre, que ele abra mão de algum valor interior para poder dar sustento ao seu valor principal, sua própria vida... Embora atualmente muitos homens estejam tão divididos em si mesmos que nem esse valor levam mais em consideração. Assim como a batata, o homem também se divide em vários outros “tipos” de homem para dar sustento a ele e a sua família; se abnega da sua própria moral para manter-se em um determinado emprego, se sujeita a deixar de lado seu espírito intelectual para ganhar mais dinheiro em um determinado local, etc e etc.... tal como a batata, que nunca poderá ser ingerida de uma única vez sem ser cortada, amassada, cozida, frita ou assada .

Esse é o fim do homem. Vence, ou morre triturado por uma enorme boca de dentes invisíveis, mas poderosos e devoradores. Aquele que estiver mais bem preparado, mais bem empregado, mais bem disposto, contendo ou sabendo todas as novas invenções tecnológicas, ostentando beleza e dinheiro triunfará digestivamente no sujo estômago capitalista. Não é por menos que as batatas do Macdonald´s fazem tanto sucesso. Selecionadas, sequinhas, crocantes, acompanhadas de catchup ou maionese, são uma deliciosa necessidade para saciar a fome de consumo e poder do sistema capitalista atualmente vigente.

Nós e as batatas somos iguais dentro da nossa sociedade de consumo. Temos até o mesmo fim. Ou somos honradamente e com sucesso consumidos por grandes grupos que nos usam para se manterem no poder ou fatalmente somos triturados para acompanhar outras provisões, ou produções de somenos importância para a elite.... isso quando não viramos tão somente batata-palha, que é a realidade de muitos homens: comum, não necessita de apresentação, pode ser digerida sozinha ou acompanhada, e não atrapalha o consumo de outros pratos, ou de outros interesses.