Marcelo Almeida do Nascimento

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Neste blog você encontrará os textos originais dos meus projetos literários, peças teatrais, roteiros e apresentação de jogos de tabuleiro. osbatutas@yahoo.com.br

Escrever para quê?

O título acima faz parte de uma discussão que termina na seguinte conclusão: Ler para quê? Há muitos anos tenho desenvolvido minha teoria a respeito dos hábitos da leitura e do gosto pela literatura. Por isso estou voltando a usar este blog para discutir um pouquinho sobre a falta de leitura e o comprometimento disso na escrita. Afinal, para que escrever se não há ninguém para ler.



Peça Teatral - Por que pediram a Evans?

Esta foi uma das primeira peças que Escrevi. Quem já leu Agatha Christie pode pensar que eu me basei no seu livro Por que não pediram a Evans?, mas na verdade só quis fazer uma pequena mesura a minha escritora predileta. A peça nada tem a ver com campos da Inglaterra, ilustres decadentes e crimes inexplicáveis... se bem que há um crime na estória toda... mas será que foi o mordomo?

PERSONAGENS:




JUIZ PEDRO

PAULO

JORGE

SARAH

BIANCA

ALLEXIA

EVANS

MÉDICOS

POLICIAIS





















É noite de reveillon. Interior da biblioteca da mansão do Juiz Aposentado Pedro Machado Alcântara. O local é ornado com estantes altas em ambas as laterais, cujas prateleiras estão repletas de livros. Na parede central há uma lareira. Acima dela se vê um quadro de grandes dimensões com a figura de Maquiavel pintada a óleo sobre um fundo escuro. Do lado esquerdo da lareira há um cesto para os atiçadores de lenha Nas paredes ao lado da lareira há dois vitrôs basculantes, com vitrais desenhados, que chegam quase ao teto, onde no centro há um suntuoso lustre de cristal. Ainda do lado da lareira, vasos grandes de barro ficam bem abaixo dos vitrais. O chão é de um assoalho lustroso bem encerado. Um tapete persa, ricamente desenhado e felpudo forra o chão para os móveis que ali existem: uma grande escrivaninha em mogno antiga com uma cadeira à direita, duas poltronas confortáveis no centro da sala e, mais à esquerda, um pequeno divã, existindo entre eles uma mesa de centro de madeira trabalhada e, ao lado do divã, um aparador de mogno antigo com um vaso de cristal. Acima das estantes, nas laterais, arandelas iluminam os cantos altos do móvel. A porta situa-se do lado esquerdo, encravada entre os livros da estante. É envernizada, com fechadura e maçaneta douradas. Sobre a escrivaninha há um telefone, um busto de mármore do pai do Juiz Pedro, papéis diversos, cinzeiro, caneta tinteiro, lupa, além de um abajur pequeno e delicado. Sobre a mesa de centro há cinzeiros, um candelabro e alguns badulaques de cerâmica. O ambiente está iluminado. O tom é de um amarelo pálido, embora o lustre e as arandelas estejam acesas, menos o abajur. Ouve-se som de chuva e trovoadas. Às vezes, o brilho de um raio invade a sala através dos vitrais.

A porta se abre. Surge o Juiz Pedro. Veste paletó e calça de cores escura. Está sério, com uma fisionomia taciturna. Trás nas mãos alguns papéis. Atravessa a biblioteca em passos apressados. Senta-se à escrivaninha. Olha para os papéis em suas mãos. Balança a cabeça negativamente. Faz menção de rasgá-los, mas pára subitamente. Consulta seu relógio no pulso esquerdo. Abre o paletó. Saca do bolso interno um aparelho celular. Digita alguns números:

Pedro - Doreto? Alô? Doreto? - fica nervoso ao constatar que não consegue ser ouvido - Fala comigo Doreto! Droga! Tá me ouvindo? Tá me ouvindo? O avião! O avião já tá pronto? Alô? Doreto?

Um forte trovão ribomba no céu, fazendo com que ele desista da ligação.

Pedro - E essa chuva agora! Deve estar tudo alagado. Nem teto para voar deve ter uma hora dessas. Maldita chuva!

Ouvem-se três batidas na porta. Surge Evans, o mordomo. Trajando um uniforme cinza impecável, caminha em passos miúdos até a escrivaninha, enquanto o Juiz Pedro preocupa-se em esconder os papéis dentro de uma gaveta.

Evans - Com sua licença doutor! Sua bagagem já está dentro do carro. O motorista o aguarda. Devo dizer para aonde o senhor deseja ir?

Pedro (gritando e gesticulando de forma impaciente) - Não! Não precisa dizer nada. Eu não sei prá onde eu vou ainda. Deixa ele lá esperando.

Evans - Mas pela quantidade de roupa e alguns objetos que o doutor pediu para separar deve ser uma viagem bem longa, eu presumo.

Pedro (ainda colérico com o serviçal) - Você não tem que presumir nada Evans! Porra nenhuma! Quem vai viajar sou eu e não você. Não se meta nos meus assuntos particulares. Já te disse isso um milhão e meio de vezes!

Evans - Perdão senhor! Estava apenas querendo deixar tudo mais preparado para sua saída.

Pedro - Quando eu sair você vai saber. E não interessa para onde eu vou ou o que vou fazer. (levanta-se de súbito, batendo as mãos no paletó) Meu passaporte! O meu passaporte! Você separou o meu passaporte?

Evans - Sim senhor. Coloquei-o dentro de sua valise de mão, junto com os cartões de crédito e outros documentos. Inclusive doutor eu gostaria de sugerir ao senhor para levar algum dinheiro vivo pois...

Pedro (aos berros) - Pára de falar em dinheiro merda! Eu sei o quanto eu preciso de dinheiro para viajar. Não preciso que você fique bancando a minha mãe nem me dando conselhos.

Evans (sempre inabalável) - Sinto muito senhor. É que quando o senhor viaja sempre costuma levar dinheiro. Dólares ou Euros.

Pedro - Evans! Cale sua boca! Chega de falar em dinheiro e dá o fora daqui. Suma daqui.

Evans - Com sua licença senhor.

Com a mesma elegância e atitude de como entrou, Evans sai pela porta, enquanto Pedro faz um gesto de impaciência para ele com a mão.

Ainda com uma fisionomia nervosa e preocupada, Pedro senta-se novamente à escrivaninha, abre a gaveta do móvel e volta a pegar os papéis, olhando-os com preocupação. Novamente utiliza o seu telefone celular.

Pedro - Alô? Doreto? Tá me ouvindo Doreto? Porra! Até que enfim essa merda tá funcionando. E aí? Já tá pronto? O meu jatinho já tá pronto prá sair agora? Han? O quê? Sem condições? Sem condições do quê? Sem condições de vôo? Mas... quando vai dar? Hein? Quando vai dar para sair? Alô? Doreto? Alô? Maldita ligação!

Guarda o aparelho no bolso do paletó. Sem pestanejar, abre novamente a gaveta e pega um isqueiro prateado. Pega o cestinho de lixo e o coloca por sobre a mesa. Rasga nervosamente os papéis dentro do cesto. Abre novamente o paletó. Pega uma garrafa pequena de bebida. Toma um gole. Despeja um pouco por sobre os papéis. Guarda a garrafa. Acende o isqueiro e faz com que os papéis comecem a se incendiar. Senta-se relaxado, olhando tranqüilamente para a chama que se forma.

Pedro - Queimados com bourbon. (ri de forma nervosa) No final das contas, tudo se resolveu com um bom gole de bourbon.

Ouve-se o som da campainha da casa ao longe. Pedro levanta-se da cadeira num pulo. Visivelmente assustado, apressasse em apagar o fogo no cesto com as mãos. Pega-o com cuidado. Vai até a lareira e despeja o seu conteúdo sobre alguma madeira que ainda lá está. Volta correndo até a escrivaninha.

Três batidas na porta. Evans surge novamente trazendo um envelope na mão.

Evans - Doutor Pedro. Sua irmã, senhora. Sarah, acaba de chegar. Trouxe consigo um convite para festejar a passagem de ano aqui. O senhor não me disse que iria fazer uma festa de reveillon aqui hoje.

Pedro (novamente em pé e com uma fisionomia preocupada) - Festa? Aqui? Mas que convite é esse? Eu não convidei ninguém para vir aqui hoje. O que... mas do que você está falando?

Evans se apressa em entregar o convite a Pedro, que o abre e passa a lê-lo sem esconder sua surpresa.

Evans - Está um pouco molhado por causa da chuva. Aliás, a Sra. Sarah está bastante molhada também. Ficou a retocar a maquiagem no hall.

Pedro - (lendo o teor do convite) Isso é um absurdo. Um absurdo. Uma patuscada!

Evans - Devo alertá-lo senhor para o fato de que não preparamos ceia para convidados. Apenas os empregados prepararam um assado e compraram algumas frutas para cear entre eles. Não sei se...

Pedro (aos berros) - Mas eu não mandei esse convite! Eu não sei de nada disso aqui. De festa. Que festa? Quem escreveu essa merda aqui? Que mentira toda é essa?

De forma delicada, Evans pega o convite das mãos do seu patrão.

Evans - Com licença Senhor. Foi impresso em computador. (lê-o em voz alta) – “ Querida irmã...”

Pedro - Mas que mentira. Eu nunca chamaria aquele traste de querida!

Evans (continuando) – “ ... Vou festejar a passagem de ano em casa. Se você estiver em São Paulo venha me ver. Dou-lhe boa comida, bebida e gente bonita! Só não lhe dou um namorado novo. Aguardo ansioso. Pedro.” Realmente, não foi o senhor quem enviou isso.

Pedro - É claro que não! Eu nunca gostei de passar o final de ano com a louca destrambelhada da minha irmã! Jamais a chamaria para vir aqui hoje. Justo hoje. Isso só pode ser um trote. Eu nunca escrevi isso aí.

Evans – O teor do convite é muito educado para ter sido escrito pelo senhor. De fato, tanta educação assim não é do seu feitio.

Pedro - O que você disse?

Antes que Evans pudesse responder alguma coisa, Sarah rompe pela porta adentro. O seu blaser branco, bolsa de couro branco e sandálias brancas contrastam gravemente com sua pele enrugada e maquiada e seus cabelos lisos pintados de vermelho.

Sarah - Gente! Mas cadê a festa! Maninho, onde estão todos? Cadê a festa que você prometeu?

Vem andando em direção a escrivaninha. Pára próximo a Evans.

Sarah - Nossa não tem ninguém aqui ainda? Oi Evans querido, não sei se já cumprimentei você. (lhe dá dois beijos na face, deixando-lhe a marca de batom). Deve ser a chuva né? O trânsito tá horrível lá fora. Só o táxi demorou mais de meia hora para me pegar lá no meu apartamento

Pedro - Mas você pode me dizer o que está fazendo aqui hoje, logo hoje, Sarah?

Sarah (com os olhos arregalados) - Ué? Como assim? Eu vim prá festa que você me convidou, oras? (abre sua bolsa e procura um lenço). Evans, você me empresta um lenço ou guardanapo por favor? Você trocou as plantas do lado de fora de novo, né Pedro?

Evans lhe estica um lenço branco que traz no bolso. Ela o pega e tira o batom da boca, devolvendo-o a seguir para o mordomo e aproximando-se para dar um beijo em seu irmão) Onde tá todo mundo? E a festa?

Pedro (desvencilhando-se da irmã) - Que festa Sarah? Que festa? Você tá mais louca do que de costume, é? Eu não vou dar festa nenhuma, porra!

Sarah - Como não? E esse convite que você me mandou? Você me mandou um convite. Tá aqui na mão do Evans! Eu não tô loca não, viu! Eu não sou louca! Só vim aqui porque você me convidou.

Pedro - Mas eu não mandei droga de convite nenhum prá você! Isso aí é algum trote. Alguma pegadinha de um idiota que resolveu rir da sua cara.

Sarah - Pegadinha? Como assim pegadinha? Tá aí escrito o seu nome pôxa!

Pedro - Eu sei... mas não fui eu que mandei isso ai. Não fui eu. Eu tenho milhões de outras coisas para resolver ainda hoje. Não ia ficar dando festa para um bando de desocupados aqui na minha casa.

Sarah olha um tanto atônita para Evans.

Evans (com a mesma postura de antes) - Creio que definitivamente ele não mandaria um convite desses.

Pedro (nervoso) - É claro que não! Eu tenho muito mais o que fazer do que ficar dando festa. Isso é um trote. Uma piada de mal gosto.

Visivelmente chateada, Sarah senta-se em uma das poltronas.

Sarah - Nossa, mas... Esquisito isso, né? Como é que alguém ia mandar um convite em seu nome para onde eu moro para vir aqui hoje?

Pedro - Eu nem sabia que você estava em São Paulo. Prá mim você devia tá viajando pela Europa nesta época do ano.

Sarah - Mas eu mandei avisar você de que eu estaria por aqui neste ano.

Pedro – Ninguém me avisou nada. Eu não estava sabendo de nada.

Sarah – Mas tá vendo? Tá vendo? Desde que você ficou sem secretário é uma luta sofrida te achar ou deixar algum recado. Uma luta!

Pedro – Eu não quero saber de mais ninguém tomando conta da minha vida e dos meus negócios. Não quero saber de mais ninguém.

Faz-se um breve silêncio, rompido por Sarah.

Sarah - Bom, já que não tem festa, vamos pelo menos brindar, né? (olha para o relógio) daqui a pouco é meia-noite mesmo.

Evans (se prontificando) - Vinho ou champanhe, senhora?

Mas antes que Sarah pudesse responder, ouve-se o som da campainha novamente.

Pedro - Eu não acredito! Outra vez a campainha? Mas o que está acontecendo aqui hoje?

Evans - Com licença senhor (e se encaminha para a porta).

Sarah - Ué? Quem será? Você não falou que não ia dar festa nenhuma?

Pedro (nervoso) - E eu não vou dar festa Sarah! Não vou! Meta isso na sua cabeça.

Sarah - Pôxa! O Evans podia ao menos ter trazido um vinho frisante...

Enquanto Pedro fica a andar de um lado para o outro, Sarah o observa atentamente.

Sarah - Pedro? O que foi? O que você tem? Você parece tão nervoso?

Pedro não responde. Apenas gesticula de forma desinteressada para ela, quando então ouve-se novamente três batidas na porta. Evans surge:

Evans - Doutor Pedro. Senhor Jorge, seu ex-secretário, acaba de chegar. Trás também um convite para uma festa de reveillon aqui. O senhor tem certeza de que não ia mesmo dar uma festa?

Pedro (visivelmente atônito) - O Jorge? Aqui?

Antes de ser formalmente anunciado, Jorge entra na biblioteca. Veste um ultrapassado paletó marrom, uma camisa branca de colarinho grande e uma calça social azul-marinho. Em seus pulsos podem se ver um relógio dourado quase saindo pelo seu punho e várias pulseiras douradas.

Jorge (com uma certa animosidade) - Boa noite doutor Pedro. Boa noite Dona Sarah. Desculpa ai, mas acho que cheguei um pouco adiantado, né? A festa nem começou...

Pedro - Mas o que você está fazendo aqui, seu crápula nojento? Quem disse que você podia voltar a entrar na minha casa?

Sarah - Nossa Jorge! Há quanto tempo. Pensei que você tava preso.

Jorge - Calma aí Doutor. Pega leve comigo, hein? Foi o senhor que me convidou. (pega o convite das mãos de Evans e o entrega para Pedro) Tá aqui, ó. Foi você que me mandou. Visivelmente nervoso, Pedro arranca o convite da mão de Jorge e o lê em voz alta:

Pedro – “ Caro Jorge. Vamos esquecer nossas rusgas e brindar ao futuro O espero para uma festa de reveillon em minha casa. Não falte. Vamos celebrar e não brigar. Um Abraço, Pedro.” (irado, amassando o convite e o jogando no chão). Mas que merda é essa? O que está acontecendo aqui? Quem te mandou essa porcaria Jorge? Quem?

Jorge (visivelmente atônito) - Ei! Ei! Péra-la! O que que tá pegando? O que tá acontecendo aqui?

Sarah - O que tá acontecendo é que não vai ter festa, querido. Pelo menos o Pedro não sabe que vai ter.

Jorge (desconfiado) - Então porque ele mandou o convite prá mim?

Pedro - Eu não mandei convite prá ninguém! E jamais mandaria um convite prá vocês. Somente se fosse com uma bomba.

Jorge - Êpa! Pega leve doutor! Qual é?

Pedro - Como qual é? Você acha que eu iria te convidar, convidar um traidor, pernóstico, sujo e viciado em jogo como você para vir até minha casa depois de tudo o que você me fez? Depois de tudo o que você tentou fazer contra mim? Você acha?

Jorge - Mas foi você que me mandou um convite prá festa! Eu também não vim aqui para ser humilhado por você não. Tava o seu nome no convite e foi parar no meu endereço.

Evans – Desculpe, senhor Jorge, mas parece que houve algum tipo de mal entendido aqui hoje. Segundo consta, o doutor Pedro não enviou nenhum convite para a noite de reveillon de hoje.

Sarah - É. Nem para mim ele mandou. Só que eu recebi. Que é esquisito é, mas eu recebi.

Pedro (andando impacientemente de um lado para outro da sala) - Eu já sei. Eu já sei. Estão armando contra mim. Você seu lixo (xinga andando em direção a Jorge), você é quem tá armando tudo isso, não é? Você quer me dar outro golpe não é seu calhorda? Seu verme!

Jorge (tomando uma postura defensiva) - Aí Doutor! Do que você tá falando? Eu não tô entendendo nada. De que armação você tá falando? Eu não fiz nada. Não armei nada, qualé?

Percebendo que os ânimos estão ficando exaltados, Evans se prostra entre Pedro e Jorge.

Evans - Doutor Pedro, sugiro que acatemos o pedido da senhora. Sarah e, pelo menos, brindemos a passagem de ano. Já estamos próximos da meia-noite.

Sarah (levantando-se sorridente) - Isso mesmo. Vamos brindar meninos. Vamos brindar.

Pedro (se afastando de Jorge murmurando) – Eu não esqueci de nada do que você fez. Não esqueci.

Jorge (o encarando) – Nem eu doutor. Nem eu!

Todos começam a ouvir vozes vindo do lado de fora. Uma discussão generalizada.

Pedro (atônito) – Mas... O que está acontecendo na minha casa hoje?

Evans vai abrir a porta, mas antes que consiga pegar na maçaneta, entra Paulo, irmão de Pedro. Veste um terno branco, com gravata, camisa e sapatos da mesma cor. Logo atrás dele vem Bianca, sua noiva. Traja um tailler e sandálias de cor branca, assim como sua bolsa;. Paulo carrega uma garrafa de champanhe, enquanto Bianca assopra um apito ao mesmo tempo em que joga confetes coloridos pela casa.

Paulo (festivo, cantando alto uma música de carnaval e erguendo a garrafa de champanhe) - Feliz ano novo! Feliz Ano Novo! Vamos lá gente! Vamos animar essa festa que tá muito parada. (continua cantando)

Bianca (jogando confete sobre os convidados) - Feliz Ano Novo! Feliz Ano Novo! Feliz Ano Novo!

Aproxima-se de Evans e lhe dá um abraço demorado. Ao chegar próximo de Pedro deseja em inglês macarrônico)

Bianca - Happy Now Yer!

Evans (mantendo a mesma calma de sempre) – Desculpe-me doutor Pedro, mas o seu irmão doutor Paulo e sua noiva, senhorita Bianca, não esperaram serem anunciados.

Pedro (gritando) - Paulo! Paulo! Para com essa palhaçada toda, porra! Você aí menina! Pare de sujar a minha casa! Onde vocês pensam que estão? Na gozolândia?

Paulo (contrariado) - Escuta, ô Pedro! O que é, hein? Quer dar festa sem barulho, quer dar show sem música, qual é porra? É fim de ano, meu! É festa! Cadê a festa?

Sarah (dirigindo-se para Bianca) – Noiva? Mas cadê a aliança?

Bianca – A gente não colocou ainda. Mas já somos noivos.

Sarah - Ai mocinha, desculpa. Eu não te conhecia ainda. Você é a nova noiva do Paulo. Prazer, viu?! Eu sou a Sarah, a irmã dele. Posso jogar um pouco de confete também?

Pedro - Que porra de confete Sarah? Pára quieta aí no seu canto! E que festa Paulo? Que festa? Eu não estou dando festa nenhuma! (Paulo e Bianca ficam quietos com uma fisionomia de estranheza)

Jorge - É! Ele não dá festa mas manda convite prá todo mundo.

Evans (se antecipando) - Com licença doutor Paulo, senhorita Bianca. O casal também recebeu um convite para uma festa de reveillon hoje aqui?

Paulo (passando a mão pelo cabelo) – Escuta, ô mancebo de porta, o que você tá dizendo? É claro que eu recebi um convite, porra! Sem convite eu não vou a lugar nenhum.

Bianca - É! O convite chegou lá no comitê da campanha faz uma semana. Ainda bem que a gente não tava viajando.

Paulo - É, Pedro! Eu até mandei minha secretária confirmar que a gente tava vindo prá cá!

Sarah - Secretária? Tá de Secretária também Paulo? Pensei que fosse sua noiva.

Pedro (acenando com as mãos em sinal de impaciência e dando voltas pela biblioteca) - Parem! Parem com isso tudo! Isso só pode ser alguma brincadeira de mau gosto! Só pode ser. Eu não mandei convite para ninguém. Eu não vou dar festa! Eu nunca quis dar festa! Para falar a verdade eu nem deveria estar aqui.

Jorge (surpreso) - Não! Como assim não ia estar aqui? Porque que então eu recebi um convite seu para vir na sua casa para uma festa de reveillon se você não ia estar aqui?

Sarah – É! Eu também recebi um convite. Que negócio mais esquisito.

Evans - Devo confessar, senhor, não me recordar de ter recebido ordens do senhor para postar convites no correio.

Faz-se um breve silêncio entre os presentes, quebrados por um assobio indiscreto de Paulo.

Paulo – Caracas! É mesmo?

Evans – Definitivamente, é muito estranho tudo isso!

Os presentes ficam a se entreolhar com ares de curiosidade.

Paulo - Pérai gente! Pérai! Isso aqui tá virando palhaçada! Pedro, pô! Eu recebi o convite (passa procurar nos bolsos do paletó por ele. Encontra-o e entrega para Pedro) Tá escrito seu nome. Tá assinado o seu nome aí, porra!

Pedro toma-o na mão com fervor. Evans também se aproxima do patrão assim como Sarah.

Pedro - Ei! Alto lá! Essa letra não é minha! Essa assinatura não é minha! Eu desconheço essa assinatura. Não fui eu quem fez isto, nem sei quem foi. Melhor. Eu quero saber quem foi o desgraçado que falsificou o meu nome nessa porra aqui!

Sarah - Ué! Engraçado! O meu convite não tá assinado.

Jorge - O meu também não tá!

Todos passam a procurar pelos seus convites. Pedro volta e se senta à escrivaninha, enquanto os outros se acomodam pelo espaço com ares de espanto, ficando apenas Evans e Jorge próximos a Pedro comparando os convites.

Evans - È verdade senhor Pedro. O convite do doutor Paulo e da senhorita Bianca está assinado. Porém, os do senhor Jorge e da senhora Juss...

Sarah (interrompendo a fala do serviçal) - Evans... por favor!

Evans (arranhando a garganta) - Perdão pelo lapso. De fato, os convites do senhor Jorge e da senhorita Sarah não estão assinados.

Sarah - Obrigada Evans!

Pedro - E essa letra não é minha! Não é minha mesmo! Eu não assinei esse convite.

Evans – Realmente não parece ser sua assinatura usual.

Jorge - Bom. Talvez a pessoa que mandou os convites para a Sarah e eu sabia que a gente conhecia a letra do Juiz.

Evans – É bem provável que sim senhor.

Pedro – E tem outra coisa estranha: Todos os convites parecem iguais. Só o do Paulo foi riscado. Foi riscado o nome da sua noiva e colocado esse aqui... Bianca.

Paulo – É! É isso mesmo! Pensei que você tivesse escrito o nome da minha noiva errado. Foi ela mesma quem consertou..

Bianca – Sim! Foi isso mesmo. Tava um outro nome lá e eu risquei e escrevi o meu nome. Nem me lembro que nome era.

Jorge (se esforçando para identificar o nome riscado) – Não dá para ver qual era o outro nome. Tá muito riscado.

Sarah – Nossa! Então quem mandou o convite não sabia que você tava de noiva nova?

Paulo – Escuta Sarah! Presta atenção! Eu gosto muito de você, mas acho melhor você parar para pensar um pouco. Eu sou seu irmão porra! Será que você não sabe que eu nunca tive noiva antes? A Bianca, a minha Bibi é a minha primeira e única, não é Bibi?

Bianca - É sim!

Paulo (sorrindo satisfeito) - Eu nunca tive noiva antes. Como é que alguém ia saber que eu tava noivo? Só vocês sabiam.

Todos balançam a cabeça negativamente.

Jorge - Eu não sabia. Aliás, só sei que você está tentando ser Prefeito numa cidadezinha aí do interior.

Sarah - É! Eu também não sabia não. Uma das minhas amigas da creche que eu dirijo que me contou que você ia sair candidato a Prefeito... Mas que você estava noivo eu não sabia não

Paulo - Porra! Mas o Pedro sabia.

Pedro – Eu? Eu não. E eu lá quero saber da sua vida, Paulo?

Paulo - Mas eu liguei prá você dizendo. Eu liguei prá você. Liguei aqui na sua casa.

Pedro - Você devia é estar tão bêbado ou sabe-se lá com o que na cabeça que nem sabe se ligou prá mim ou não.

Bianca fica olhando com desdém para Pedro.

Sarah – E faz tempo que vocês estão noivos?

Bianca - No dia dez fez seis meses.

Sarah - Aí que lindo! E vocês já têm até apelido, bonitinho! E você, Bibi? Como é que você chama ele? Papá?

Antes que ela pudesse responder, Paulo responde de forma ríspida.

Paulo – Para ela! É doutor Paulo. Doutor Paulo não é querida?

Novamente Bianca assente positivamente com a cabeça.

Bianca - É sim. Dr. Paulo. Dr. Paulo querido.

Sarah - Ah... mas porque você não chama ele de Papá? Ia ficar tão bonitinho! Bibi prá lá, Papá prá cá!

Paulo – Eu sou um político sério, porra! Não posso ter apelido a toa! Vai que cai na boca dos meus adversários e eu acabo fudido.

Jorge – Mas tem tantas outras coisas que eles poderiam saber...

Paulo ( nervoso) – Ei! Escuta aqui, ô seu puto! O que você tá querendo insinuar, hein?

Pedro (olhando fixamente para Bianca) – E você não sabe, que dizer, não lembra qual era o outro nome que estava escrito no convite?

Bianca apenas assente com a cabeça, agora negativamente.

Paulo (respondendo em seu lugar) – Ah! Era um nome besta ai. Parecia nome de baiana.

Sarah – Aí Paulo, credo! Olha a discriminação.

Paulo – Escuta! Mas que discriminação eu tô fazendo? Só baiana tem nome de baiana mesmo, não é porra?

Evans (também olhando para os convites) – Cada um tem um texto diferente. Creio que posso afirmar, doutor Pedro, que a pessoa que os enviou escreveu textos distintos para cada um dos aqui presentes.

Pedro – Mas como será que esses convites chegaram até eles? Quem os entregou?

Jorge – Eu recebi o meu pelo correio.

Paulo – O meu eu não sei!

Bianca (adiantando-se) - Foi pelo correio também. Foi pelo correio. Eu que recebi.

Sarah – O meu chegou pelo correio. Não vi a cara do carteiro, mas o envelope tinha selo e carimbo.

Pedro (visivelmente intrigado) – Mas o que será que é isso tudo, droga? Só pode ser algum golpe. Algum golpe! Um de vocês está querendo me prejudicar de alguma forma, estragando a minha viagem. Algum de vocês sabia que eu iria viajar hoje e aprontaram essa para cima de mim, não foi? Hein? Vamos, digam a verdade. Digam a verdade!

Jorge – Viagem? De que viagem você está falando? Como é que você iria viajar hoje, agora, véspera de ano novo?

Paulo (irônico) – Só pode ser no jatinho novo que ele comprou sabe-se lá como, não é maninho?

Sarah – Jatinho? Você tem um jatinho, Pedro? Nossa! Disso também eu não sabia.

Pedro (colérico) – O que eu tenho ou deixo de ter não é problema de vocês. Assim como se eu vou viajar ou não também não é um problema de vocês. Agora chega! Chega de palhaçada! Chega dessa embromação estúpida. Eu quero saber! E quero saber agora quem de vocês inventou essa besteira, essa algazarra aqui na minha casa.

Todos fazem silêncio.

Paulo – Escuta! Escuta aqui, ô maninho! Se você, que além de ser o dono da casa, ter um jatinho e ser Juiz, apesar de já aposentado, metido a sabe tudo, não sabe, como é que a gente vai saber? Se vira, pô!

Jorge – Então quer dizer que uma outra pessoa convidou a gente para vir aqui e não você? Caramba! Então quem foi?

Evans – Será que foi algum de vocês presentes aqui agora?

Sarah – Será que não vai chegar mais gente?

Bianca – Ô gente, só sei que eu não fui.

Nesse instante todos se sobressaltam com batidas na porta.

Pedro – Pronto! Era só o que me faltava. Mais um convidado! Quem será agora?

Sarah – Será que é alguma socialite famosa?

Jorge – Com certeza é algum outro convidado com convite que não é do Juiz..

Evans se antecipa e abre a porta.

Evans – Pois não Eugênia. (fica alguns segundos conversando com uma pessoa do outro lado da porta). Aguarde um instante. Vou perguntar ao doutor Pedro. (vira-se de volta para a sala). Doutor Pedro, os serviçais querem saber se o senhor deseja providenciar algo para seus convidados. Disseram que falta menos de quinze minutos para o ano novo e queriam saber o que o senhor pretende servir.

Paulo (levantando-se num pulo) – Ótima! Ótima idéia! Já que estamos aqui vamos comer e beber alguma coisa (pega a garrafa de champanhe que trouxe). Vamos lá pessoal. Vamos comemorar.

Pedro – Ei! Espere. Espere aí Paulo! Pode parar por ai. Ninguém sai dessa sala enquanto não me disserem quem armou essa brincadeira estúpida e de mau gosto comigo. Eu exijo explicações. Exijo explicações.

Sarah – Aí Pedro! Deixa disso. Quem interessa quem mandou o quê prá quem uma hora dessas? Já estamos todos aqui. Vamos aproveitar.

Jorge – Eu estou com a garganta seca.

Bianca – É! Se não foi você, foi outro que mandou. Vai ver foi o Evans, não é? Nos filmes não é sempre o mordomo que é o culpado? O mordomo sempre sabe de tudo, sempre vê tudo... Pronto. O mordomo é o culpado por estarmos todos aqui. Pode ser assim?

Sarah, Paulo e Jorge dão risadas.

Paulo – É! É isso mesmo, porra! O culpado de tudo aqui é o nosso amigo Evans, não é mesmo meu querido?

Em posição solene, Evans assente negativamente com a cabeça.

Evans – Desculpem-me senhores e senhoritas, mas devo dizer que não gosto da chacota da qual estou sendo alvo nesse momento. Pelo o que percebi até agora a situação instalada de forma insólita nesta residência não deve ser tratada como um ledo engano ou uma pura piada jocosa. Alguém, e não sei quem, se algum de vocês ou quem mais vier a chegar, de forma deliberada e premeditada, reuniu todos aqui por algum motivo. Algum motivo. E devo confessar que não pressinto ter sido por um bom motivo.

Nesse instante um trovão ribomba e ecoa por toda a sala. Todos se emudecem e se entreolham. Evans continua junto a porta, olhando a todos com um certo ar de superioridade. Jorge está próximo à lareira e olha para o Juiz Pedro, de pé atrás de sua escrivaninha, olhando desconfiado para Bianca, sentada em uma das poltronas com a mãos sobre os joelhos unidos, lançando um olhar “quarenta e três” para Sarah, que esticada no divã fica a olhar para cima evitando cruzar o seu olhar com os demais, enquanto Paulo, no meio da sala, segura sua garrafa olhando para os demais com ar perdido.

Evans (com a mesma inflexibilidade) – De fato não pressinto nada de bom!

Mais uma vez um trovão ribomba. E a luz da sala se apaga por alguns instantes. Ouve-se um grito feminino. Passos. Arrastar de móveis. O som da porta se fechando, tudo isso em meio a escuridão. Após alguns segundos a luz retorna.

Agora se vê Jorge mais próximo da lareira no seu lado esquerdo, próximo a porta, com a mão direita nas costas por debaixo do paletó e um ar assustado. O Juiz Pedro está mais distante de sua escrivaninha, encostado em uma das estantes, com as mãos também para trás, com os olhos atentos.. Sarah está de pé, no outro lado da sala, com as mãos no peito e arfando. Apenas Paulo se conserva no mesmo lugar, assim como Bianca, que está tampando seus olhos com as mãos, enquanto Evans continua junto a porta como antes, porém agora com ela fechada.

Paulo – Droga! Mas que porra é essa? O que foi que aconteceu?

Bianca (tirando as mãos por sobre os olhos) – Ai! Desculpem. Fui eu! Fui eu que gritei. Eu tenho medo do escuro.

Pedro – Então abra os olhos, porra!

Sarah –Ufa! Mas que baita susto! Isso deixa a gente assustada mesmo. Olha gente! Meu coração até disparou.

Paulo – É claro que dá susto. Esse cara aí (aponta para Evans) fica contando essas histórias da carochinha prá gente justo quando acaba a luz... Ele quer é matar um de nós do coração.

Pedro (olhando para Jorge) – O que foi Jorge? Está com dor nas costas?

Jorge (se recompondo de forma nervosa) – Não. Não. Não foi nada. Mas o que foi que aconteceu agora?

Evans – Creio que com a queda do último raio a eletricidade se estancou por alguns instantes. Com licença um minuto. (atravessa a sala e vai até uma das arandelas dispostas do lado direito da biblioteca. Com a ajuda de uma escadinha, parece mexer em alguma lâmpada dali, embora ela estivesse acesa) Deixe-me ver se está tudo funcionado.

Bianca – Meu Deus! Que susto que levei. Paulo querido, não estou gostando de nada do que está acontecendo aqui. Nada mesmo.

Paulo – Nem eu querida! Nem eu! Gente! Vamos logo beber alguma coisa, porra! Tô ficando agoniado de ficar nessa sala sem beber nada.

Evans desce da escada e, após olhar a outra algo na outra arandela, se prostra perante o Juiz Pedro.

Evans – Antes de sairmos daqui doutor Pedro, creio ser providencial olhar os disjuntores da casa e verificar os ambientes, afim de constatar se não há mais nenhum problema com a eletricidade e que todos os cômodos da casa estão iluminados para assim evitar algum acidente enquanto todos circulam.

Pedro – E você não quer que eu vá fazer isso, não é?

Evans – Claro que não senhor. Com sua licença.

Pedro aproxima-se novamente da escrivaninha, abre uma gaveta e tira um charuto dali de dentro, jogando-o sobre a mesa.

Pedro – Antes de ir ver essa porra da eletricidade, acenda isso aqui para mim.

Evans – Pois não senhor!

Evans então passa a abrir o charuto. Durante o processo, tira um isqueiro do bolso e acende o charuto, chegando a dar uma tragada, enquanto Pedro passa a andar pela sala, olhando seu relógio de pulso insistentemente.

Pedro – Agora quero que vocês prestem bem atenção. Assim que eu tiver tempo eu vou tirar isso tudo a limpo. Bem a limpo. E vou escorraçar bem, mas bem mesmo o desgraçado ou desgraçada que aprontou isso tudo para cima de mim. Mas vou mesmo. Quer seja algum de vocês ou algum outro palhaço.

Paulo – É o que eu sempre digo: Todo castigo prá corno é pouco! Agora sobrou para nós levarmos a culpa por algo que ninguém fez.

Sarah – Aí Pedro! Chega disso! Ninguém aqui ficou mandando convite um pro outro. Não fomos nós.

Jorge – Claro que não! Eu nem sei onde ela (aponta para Sarah) mora. Muito menos o Paulo e essa noiva dele ai.

Paulo (nervoso, voltando-se para Jorge) – Ei! Olha como você fala com ela seu escroque!

Evans se aproxima e passa o charuto para Pedro.

Evans – Pronto, doutor Pedro.

Paulo (dispersando sua atenção para Jorge voltando-se para Pedro) – É... pelo visto só você fuma um cubano por aqui.

Pedro (olhando o charuto sem tragá-lo) – Não tem nada para você aqui!

Evans - Com licença. Vou até o quadro de força para verificar os disjuntores.

Sarah (levantando-se do divã) - Nós vamos junto com você. Não quero mais ficar aqui nessa sala com fumaça e gente me enchendo as paciências por causa de um mísero convite.

Nesse momento, porém, um novo trovão ribomba e a iluminação se apaga por dois segundos, voltando a seguir.

Sarah (voltando a se sentar) - Acho melhor esperar o Evans voltar.

Pedro (jogando o charuto sem tragar na lareira) - Isso mesmo. Vamos ficar todos aqui. Enquanto eu não souber o que está acontecendo ninguém sai dessa biblioteca. Decidido. Ninguém sai e ninguém mais entra. Ao invés de ir ver essa merda de disjuntores Evans, quero que você me traga um bourbon duplo.

Evans - Mesmo assim senhor, acho melhor...

Pedro - O que você acha eu já tenho certeza seu estrupício! Vá e traga o meu bourbon duplo, compreendeu?

Jorge - E um gin tônica para mim.

Paulo - E duas taças para mim. Vou beber champanhe com o meu amor. Não vou deixar de brindar o ano novo porque o meu irmão “tá virado no siri.”

Sarah- Eu quero uma taça de vinho branco, Evans querido. Frisante, de preferência.

Pedro (contrariado) - Bando de sanguessugas. Vocês estão aqui só para me sugar mesmo. Vá! Vá Evans. Providência isso tudo e volte imediatamente para cá.

Evans - Pois não senhor. Com licença.

Paulo (voltando a se sentar) - Mas que merda. Que grande merda. Passar o fim de ano preso na biblioteca do meu próprio irmão. Escuta! Isso dá cárcere privado, viu Juiz?

Bianca - Ai, meu bem. Eu não quero ficar mais aqui. Não gostei desse lugar. Eu quero ir embora. Eu quero ir embora.

Pedro - Não se preocupe. Também não gostei de você.

Paulo (nervoso) - Ei!

Pedro – Qual é Paulo? Eu sei o que está acontecendo. Você pegou essa aí só prá quebrar seu galho enquanto disputa as eleições. Tá na cara que essa menina não tem pedigree.

Bianca – Pedigree? Eu? Mas o que é isso? Eu não sou cachorra!

Sarah – Nossa! Você chamou a menina de cachorra?

Paulo – O quê? Cachorra? Escuta, ô irmãozinho! Só porque você é Juiz não pensa que tem o direito de chamar os outros de cachorro, não. O que você tá pensando?

Bianca – Eu quero respeito Paulo! Eu quero respeito!

Pedro (impaciente) – O pedigree que eu falo não é de cachorro! Façam me o favor. Eu estou falando de berço. De família tradicional. De origem. È disso que eu estou falando. Namoradas interesseiras, sem estudo ou algo mais no cérebro além de tintura existem aos montes por ai e estão sempre disponíveis para aqueles que precisam de apenas um ser que anda, fala e respira.

Bianca – Mas que homem audacioso. Como ele sabe que eu uso tinta no cabelo?

Pedro – Ao mais, a gente vê, é notório, tá na cara, que ela não faz o seu tipo Paulo.

Sarah – É verdade... o Paulo sempre gostou de meninas mais desembaraçadas, interessantes.... inteligentes enfim.

Jorge (enquanto anda de um lado para o outro da biblioteca, olhando a tudo com atenção) – Desembaraçados ou desembaraçadas? É bom deixar bem claro qual dos dois tipos, não é?

Paulo (nervoso) – Escuta! Vocês querem o quê de mim, hein? Meu sangue? Ao invés de festa de reveillon vamos ter a festa da inquisição? Porque vocês não me deixam em paz.! A noiva é minha, a vida é minha, o que eu gosto ou não gosto é um problema exclusivamente meu! Ora, calem a boca.

Pedro – E então, Bianca? Quanto ele te paga para fazer pose de noiva?

Bianca (demonstrando ultraje) – Não estou aqui para ouvir tamanhos desaforos. Não estou.

Paulo (ignorando Pedro e falando para Jorge) – E você seu pulha, preste atenção. Todo castigo prá corno é pouco! Você fica aí levantando o passado dos outros mas não olha pro seu rabo não que a coisa tá ficando preta, tá ficando ruim pro seu lado, hein?

Jorge (nervoso) – Não venha querer me colocar medo seu bi...

Paulo (interrompendo-o e indo em sua direção) – Ei! Cuidado com a língua, meu camaradinha! Cuidado com a língua.. Eu também posso querer falar coisas que não são nada agradáveis para você.

Jorge – Você tá ficando esclerosado Paulo. Você tá ficando esclerosado. Está muito tempo junto com essa mulher. Isso deve estar te fazendo mal. Fica muito tempo perto de uma mulher te faz mal.

Sarah (aproximando-se de Bianca e passando a mão em seus ombros, afastando-a dos demais) – Não ligue para esse bando de boçais, querida. Homem quando se junta só fala besteira. Às vezes, nem sabem o que falam.

Paulo – Você pode achar que eu estou esclerosado Jorge. E vá pensando assim. Pode pensar. Mas eu ainda sei, de cor e salteado, de trás prá frente e revestrés o número do telefone de um pessoal aí que gostaria muito de saber onde você está agora, tá me entendendo?

Jorge (nervoso) – O que é isso? Tá querendo me amedrontar meu chapa? Tá querendo me colocar pilha?

Pedro (sorrindo) – Ora, ora! Então o nosso famigerado boca aberta arranjou uma corda nova para se enforcar? É isso?

Jorge – Cale-se Doutor. Eu estou limpo. Eu estou mais limpo com a Justiça do que você. Muito mais limpo do que você e a sujeira que era o seu tribunal.

Paulo – E quem disse que eu estava falando de Justiça? Quem erra nem sempre é julgado por quem é certo. Aquele que está errado pode julgar aquele que errou, tá me entendendo?

Jorge fixa um olhar furioso em Paulo e Pedro, que demonstram estar se divertindo com a situação. Nova batida na porta e entra Evans carregando uma bandeja com as bebidas que os convidados pediram, vindo a servir primeiramente os homens.

Jorge (em tom pragmático) – Podem ficar dando a risada de deboches de vocês. Eu nem ligo. Eu nem ligo. Não tenho medo de nada. E não tenho problemas com a policia, ouviram? Com a polícia.

Evans (esticando a bandeja para Jorge) – O seu gin tônica, senhor.

Pedro (indo sentar-se novamente junto a escrivaninha) – Não se preocupe, meu caro Jorge. A Polícia existe para investigar delitos e não para desvendar mistérios. O que há contra mim é tão fantasioso que nem provas existem. Não existem.

Paulo – É isso mesmo! O mistério da multiplicação das verdinhas!

Ambos riem debochadamente.

Enquanto Paulo se concentra em abrir a garrafa de champanhe, Evans sussurra algo no ouvido de Jorge. Sem que os demais percebam, ele põe a mão no paletó e tira um frasco de plástico. A seguir, entrega uma pílula para Evans, que a toma sem beber água. Após fazer um agradecimento com a cabeça, ele vai até a escrivaninha servir ao senhor Pedro, enquanto Jorge dispensa o frasco jogando-o pelo vitrô.

Paulo (fazendo esforço para abrir a garrafa) – Escuta! Essa droga de rolha parece que emperrou, porra!

Pedro (enquanto se serve de sua bebida oferecida por Evans) – Enfia a boca nela e puxa com os dentes. Ou melhor, com a sua dentadura!

Bianca – Esses homens são um bando de grosseirões. Principalmente esse Pedro, esse seu irmão Juiz.

Sarah – Não ligue para ele, querida. É a idade. Pessoas que pela profissão são grossas, arbitrárias e mandonas chegam a uma certa idade que não conseguem enxergar além do próprio umbigo. Só eles são perfeitos. O restante da humanidade é ralé. Nossa! Eles que se virem! Eles que se entendam entre eles. Mas me fale sobre você, querida. Gosta de viajar?

Bianca (tentando se desvencilhar das atenções de Sarah) – Um pouco. Conheço poucos lugares do mundo. Nunca tive a oportunidade de viajar durante meses, de voar de cidade em cidade, de país em país, morando em hotéis e curtindo o melhor da vida em cada lugar do mundo. Oh! Isso eu não fiz ainda.

Sarah – Ah! Que pena, querida! Existem lugares maravilhosos mundo afora que você nem imagina.

Bianca – Sim eu sei. Eu sei. Eu conheço só um pouco dos Estados Unidos.

Sarah (com ar de enfado) – Ah sim! Deve ser Miami. Aquele lugar barulhento, quente e cheio de latinos. Um horror!

Bianca (sentido o menosprezo de Sarah pelo lugar) – Não. Na verdade não estive em Miami. Se você quer realmente saber, não compro nada lá. Gosto mesmo é de Nova Iorque. Já fui a Borduway assistir filmes e teatro. Sempre que vou procuro ver aquela famosa, Wall Street. É tudo em inglês, mas é maravilhosa. Depois gosto de fazer compras no Shopping Manhatam, aquele que fica no Central Park, sabe?

Sarah (olhando para ela atônita, enquanto é servida por Evans) – Sei, sei. Claro que sei.

Bianca – Inclusive eu estava lá quando teve aquele atentado horrível com os aviões. Um chegou a passar pertinho do shopping. Depois a gente só ouviu aquele estrondo terrível... Nossa! Me lembro que eu ia ficar para passar aquele natal em Nova Iorque, mas resolvi voltar para a casa da minha mãe, em Paris, sabe?

Sarah – Nossa! Sua mãe mora em Paris?

Bianca – Sim. Na praça da Torre Eifel. Num prédio elegantíssimo que existe lá. Mesmo assim não viajei mais naquele ano de 2002. Fiquei só no Brasil, descansando.

Evans (se aproximando para servir Sarah) – Perdoe-me a intromissão senhorita., mas os atentados em Nova Iorque ocorreram em setembro de 2001.

Bianca – Ah, tá. Tudo bem. Tá desculpado.

Paulo (forçando a rolha da garrafa de champanhe) – Vamos lá pessoal. Vamos brindar ao ano novo.

Pedro – Ainda falta cinco minutos Paulo.

Jorge – E nós vamos ficar aqui? Vamos ficar presos aqui nesta biblioteca? Passar o fim de ano presos numa sala cheio de livros e sendo observados por esse cara feioso aqui no quadro?

Pedro – Ei! Olhe como fala do meu mentor intelectual seu idiota!

Jorge – Sem dúvida. É a sua cara! Você escolheu um ótimo mentor. Qualquer um que justifique que roubar, matar, enganar e extorquir é legal só pode adorar mesmo um estúpido como esse ai.

Antes que Pedro pudesse responder, Paulo abre a champanhe. Bianca e Sarah batem palmas e soltam gritos festivos, enquanto Evans segura a taça para Paulo, que despeja o conteúdo da garrafa.

Paulo - Feliz ano novo! O pior ano novo que já passei na minha vida. Preso. Preso de novo. Agora na casa do meu próprio irmão. Preso junto com os maiores trastes que eu podia imaginar. Que ridículo! (passa a apontar com a garrafa para cada um dos presentes) Um endividado (aponta para Jorge), um quase procurado pela Justiça (aponta para Pedro), uma coitada (aponta para Sarah) e uma.... uma... (aponta para Bianca e não conclui, pois fica a gaguejar quando cruza seu olhar com ela).

Evans (circunspecto e grave) - E permita-se concluir doutor Paulo, bebendo uma péssima marca de champanhe.

Paulo (já com a taça na mão) - O quê? O que você falou?

Jorge – Esse Paulo... nem bebeu e já está bêbado.

Evans (mantendo a mesma sobriedade de antes) – Desculpe senhor, mas sei que existem várias e sérias restrições no mercado contra essa marca de champanhe. Os especialistas afirmam que está aí, perto de uma sidra caseira, não tem diferença nenhuma.

Paulo (colérico) – O que você tá falando? O quê? Tá falando que eu não sei escolher bebida, seu traste?

Evans (mantendo a mesma fleuma) – Não exatamente senhor. Mas essa bebida, por exemplo, é mais indicado para crianças. Adolescentes para serem mais exatos. Adolescentes.

Paulo (completamente transtornado) - Seu palhaço desgraçado! O que você pensa que está falando de mim? ( e num ato ríspido lança o conteúdo da champanhe que está em sua taça no rosto de Evans, atingindo em cheio seus olhos).

Não satisfeito, Paulo quebra a garrafa no braço de uma das poltronas e, armado com o gargalo, demonstrando estar bastante nervoso, parte para cima de Evans, que fica cambaleante andando para trás, deixando cair a segunda taça no chão.

Pedro e Jorge agem rapidamente e conseguem desarmar e conter Paulo, que ainda furioso fica a xingar o mordomo.

Pedro - Paulo! Pare com isso Paulo! Porra! O que é isso?

Paulo (colérico) - Ele me destratou. Ele me destratou esse puto! Ele falou que eu não sei beber. Que isso aqui é bebida de adolescente. Que adolescente é que gosta disso. O que ele tá pensando?

Bianca - Paulo! Paulo, meu bem, calma! Fique calmo. Não precisa se importar com isso. Calma.

Sarah - Gente do céu! Mas que fim de ano eu vim passar aqui! Que horror! Que horror!

Jorge (aos berros) - Vai sentar Paulo! Vai sentar! Vai. Chega de confusão por hoje. Chega. Já que não fomos convidados para vir aqui é melhor ir todo mundo embora. É melhor todos nós irmos embora.

Paulo, ainda arfando e com os olhos esbugalhados de raiva, se afasta de Evans e se senta ao lado de sua noiva.

Paulo - É isso mesmo! Vamos embora Bibi. Vamos embora. Eu nunca mais volto a pôr os pés nesse local desgraçado e nem olhar mais para a cara desse imbecil metido a sabe tudo.

Pedro - Tomara que nunca mais mesmo. Não sabe a felicidade que você me dá dizendo isso.

Evans (após se recompor enxugando o rosto com um lenço) - Por favor doutor Pedro, perdoe-me pelo grave incidente. Não tive idéia de que uma observação pessoal pudesse redundar em tão desagradável atitude.

Paulo (ainda demonstrando nervosismo) - Escuta! Desagradável atitude você vai ver quando eu quebrar bem a sua fuça seu desgraçado!

Evans (em tom polido) - Por favor me perdo doutor Paulo. Não quis ser inoportuno, tampouco maledicente com o senhor. Estou profundamente envergonhado.

Sarah - Nossa! Como é educado esse homem, não é gente?

Bianca (aumentando a voz) - Tá! Tá ! Chega dessa baboseira toda. É muito nhénhénhém pro meu gosto. Venha Paulo. Vamos embora daqui. Eu não quero mais ficar aqui entendeu?

Sarah - E nós vamos ficar sem saber quem mandou os convites? Quem queria passar o ano conosco e não veio?

Começa a se ouvir fogos de artificio do lado de fora da casa.

Jorge (consultando o relógio) - Acho que agora não vai vir mais ninguém. Falta menos de um minuto para meia noite.

Pedro - E a chuva não para. Maldição!

Evans - Com licença Senhor. Vou ajustar aquela arandela e recolher os cacos quebrados da garrafa.

Evans cruza a sala e, através da mesma escada, mexe na arandela do lado esquerdo.

Sarah (melancólica) - Oh! Mais um ano se foi. Mais um ano.

Paulo - Que porra de fim de ano mais chato!

Bianca - Deveríamos ter viajado para o exterior. Eu falei prá você. Eu falei prá você.

Jorge - Ninguém merece passar o fim de ano preso numa casa com um bando de louco como vocês. Não merece mesmo.

Sarah (com ares saudosos) – Ah... os reveillons. Os reveillons sempre foram os melhores momentos da minha vida. Muita festa, muita gente bonita, muitos amigos, amigas, fartura, prazer. Só gente feliz. Só pessoas alegres. Vida. Amor. Alegria. Ah... como eu adoro os reveillons. Os reveillons que passei na Europa. Em Paris. Ah, Paris! A melhor cidade do mundo para se viver. Para se amar. Para se gastar. Para tudo. Para tudo. Para se começar o próximo ano bem, sempre bem. Sempre prá frente.

Bianca (ríspida) – E agora você está aqui, presa! Passando um reveillon presa numa maldita biblioteca com gente antipática e sem o mínimo de educação (olha repressiva para Pedro, voltando-se depois com ar de meiguice para Paulo.) Por favor querido, vamos embora daqui. Eu não quero mais ficar aqui. Chega. Eu não quero mais ficar aqui.

Paulo – Escuta queridinha! E eu? Você acha que eu não quero ir embora daqui? Vamos embora já! Esse foi o pior, o pior fim de ano da minha vida. E o culpado de tudo isso é você Pedro. Você!

Pedro (nervoso) – Eu? Agora eu tenho culpa porque vocês vieram para cá atrapalhar meus planos para o fim de ano? Eu faço coro a vocês. Esse também é o pior fim de ano da minha vida.

Jorge (pensativo) – Mas porque será que estamos todos aqui hoje? Quem será que armou essa brincadeira de mau gosto?

Ninguém responde. Ao fundo, entre a chuva e os trovões, ouvem-se vozes fazendo a contagem regressiva para a chegada do novo ano.

Pedro – Eu não tenho dúvidas! Foi algum de vocês. Tenho certeza que foi algum de vocês.

Enquanto Sarah, olhando para o teto com ares de saudade fica a acompanhar em voz baixa a contagem regressiva, Bianca, de pé ao lado de Paulo, fica esperando impacientemente ele, através do seu celular, chamar um táxi.

Paulo – Agora vai ser uma merda conseguir um serviço de táxi. Aí! Ninguém atende. Nem os boçais dos meus assessores estão com o celular ligado.

Bianca (não escondendo sua pressa e contrariedade) – Deveríamos ter vindo de carro. Eu te falei, Paulo!

Ele lança um olhar repressivo para ela.

Bianca (refazendo-se) – Quer dizer, doutor Paulo! Eu falei doutor Paulo que não era uma boa idéia virmos aqui hoje. Eu falei!

Jorge por sua vez, fica a andar de um lado para o outro da biblioteca, balançando o seu copo de bebida. Olha atenciosamente para alguns detalhes do recinto e a lareira, lançando, de vez em quando, um olhar fortuito para os papéis jogados ali dentro.

Pedro – Eu tenho certeza. Um de vocês montaram tudo isso para atrapalhar meus planos. Tenho certeza.

Ao início da contagem dos dez segundos finais, Evans, que até então se prestou a mexer na arandela lateral esquerda, subitamente, passa a andar cambaleante pelo centro da biblioteca. Leva a mão ao peito, tossindo desesperadamente. Seus olhos estão esbugalhados, seu corpo curvado, até que cai ajoelhado. Numa atitude agonizante e pavorosa, fica a se estrebuchar no chão em decúbito dorsal. Enquanto lá fora se ouvem gritos de comemoração em meio a fogos de artifício, no interior da biblioteca, aos olhos atônitos de cada um ali presente, Evans pára, inerte no chão. Ao final da contagem regressiva, enquanto fogos de artificio e alarido são ouvidos ao longe, Evans permanece caído no chão. Estático. Morto.

Os homens se aproximam do corpo do mordomo, enquanto Sarah e Bianca ficam à distância, abraçadas, horrorizadas com a cena.

Bianca (aos prantos) – O que é isso? O que aconteceu com ele? O que aconteceu com ele?

Paulo – Caceta! O que será que deu nesse cara?

Pedro – Ele deve ter passado mal! Deve te sofrido algum tipo de ataque do coração! Nossa! Parece que não está respirando! Ele não está respirando.

Jorge (se aproximando mais do corpo e tocando em seu peito) – O coração dele não tá batendo. Parece... parece que ele morreu!

Sarah lança um grito lancinante, enquanto Paulo e Pedro, mecanicamente, dão um passo para trás.

Paulo – Cruz credo! Será que ele morreu mesmo?

Pedro – Faça alguma coisa, Jorge! Faça alguma coisa. Respiração boca-a-boca, massagem no peito, sei lá. Faça alguma coisa!

Jorge fica vacilante.

Jorge – Não venha me dar ordens não. Não sou mais o seu escravo.

Bianca (indo para a porta, apreensiva) – Eu vou chamar uma ambulância. Eu vou chamar ajuda.

Sarah – Tem um telefone aqui na escrivaninha. Ligue daqui.

Bianca (apreensiva) – Não se preocupe. Eu vou chamar algum dos empregados para ligarem para um hospital e chamar uma ambulância.

Antes dela alcançar a porta, sirenes de Polícia são ouvidas ao fundo, seguidas de bater de portas, vozerio, palavras de ordem como “É a polícia! Saiam da frente! Onde estão todos? Onde está o mordomo?”, quando então rompe porta adentro, ofegante e de arma em punho a Investigadora de Polícia Allexia, uma jovem mulher, trajando roupas sociais elegantes e com o distintivo da policia pendurado no pescoço.

Allexia (gritando e apontando a arma para os presentes) – Parados! Todos parados! Onde está o senhor Evans? Onde está o senhor Evans?

Todos ficam exasperados. Os homens se afastam do corpo, enquanto as mulheres voltam a se abraçar.

Pedro – Mas... quem é você? Como chegou aqui tão rápido?

Allexia (ainda esbaforida) – Eu sou a Investigadora Allexia da Polícia de São Paulo. Eu quero saber onde está o senhor Evans, o mordomo desta casa.

Paulo (apontando de forma trêmula) – Tá ali!

Allexia fecha a porta e, ainda com a arma em punho, caminha em passos rápidos na direção de Evans.

Allexia (desapontada, olhando para o corpo. Se aproxima e checa seus sinais vitais) – Oh não! Não pode ser! Não pode ser! Cheguei tarde. Muito tarde. Por Deus! Eu não consegui evitar. Eu não consegui evitar.

Ela abaixa a cabeça e emite um breve choro contido.

Jorge (apreensivo) – Mas do que você está falando? Evitar o quê?

Sarah – Ele caiu ai morto, dona Investigadora. Não teve como evitar. Ele caiu ai morto.

Allexia (voltando-se para todos com a arma em punho e passando a mão pelo rosto) – Muito bem. Ninguém se mexe. Ninguém se mexe. Ninguém sai daqui. Vocês, você todos são suspeitos, ouviram bem? Suspeitos pelo assassinato deste homem.

Todos se espantam com a acusação.

Pedro – Ei! Alto lá garota! O que você tá dizendo? Assassinato?

Bianca (assustada) – Mas ninguém aqui matou ele! Ninguém aqui matou ele!

Jorge – Você deve estar enganada mocinha. Esse cara caiu duro aí agora de pouco. Ninguém colocou a mão nele. Você deve ter errado de casa.

Pedro – Não diga besteiras. Quantas casas você acha que existem com um mordomo chamado Evans?

Paulo (soltando uma risada nervosa) – Escuta ô policia! Desculpa a franqueza mas você tá louca! Ninguém matou esse ai não. Porra, era só que me faltava...

Sarah – É verdade dona Polícia. Ninguém matou ele não. Pode ver o corpo. Ele tá inteirinho.

Ainda com a arma apontada para todos, Allexia vai andando de volta até a porta.

Allexia – É o que veremos Srs. e Sras. É o que veremos. Vamos. Todos sentados. Todos sentados. Agora!

Visivelmente contrariados, Jorge, Pedro, Bianca, Paulo e Sarah se sentam.

Bianca – Cruz credo! Eu não quero ficar perto de um cara morto. Eu não quero. Eu quero sair daqui! Eu quero sair daqui!

Allexia – Desculpe. Mas ninguém sai daqui por enquanto. (Volta até a porta e a abre, gritando a seguir). Chamem os médicos. Chegamos tarde.(com a voz embargada) Ele já está morto. (após fechar a porta se volta para todos, já refeita). Ao contrário do que vocês estão afirmando, ou melhor, até mesmo mentindo, esse homem foi vítima de um assassinato.

Pedro (nervoso) – Mas que absurdo é esse? Como assassinato? Esse homem deve ter passado mal e caiu aí morto.

Jorge – Deve ter sido do coração. Do jeito que ele estrebuchou antes de morrer...

Paulo – Mas esperai ai! Espera ai! Como é que você sabia que ele tava morto se a gente não ligou para a Polícia ainda?

Pedro (surpreso) – É verdade! Como vocês chegaram até aqui tão rápido. Ninguém ligou para a Polícia ainda

Sarah – Eu não liguei. Eu não chamei ninguém.

Allexia – Vocês não. Mas ele sim. O senhor Evans nos avisou antecipadamente que poderia morrer. Infelizmente eu não cheguei a tempo de evitar o pior.

Novamente os presentes se entreolham surpresos.

Pedro – Mas isso é ridículo. Ridículo! Como ele faria uma coisa dessas? Como?

Guardando a arma, Allexia tira um envelope de seu casaco.

Allexia – Recebi este bilhete no começo da noite de hoje. Estava endereçada a mim, e foi deixada na Delegacia por ele, pelo senhor Evans (demonstrando tristeza, ela abre a carta cuidadosamente.) Por causa dos festejos de fim de ano eu não fui localizada a tempo. Essas foram suas últimas palavras para mim em vida. Ouçam: "Cara Allexia. Por favor! Preciso de sua ajuda! Temo estar sofrendo perigo de vida! Hoje eu recebi um bilhete dizendo que eu não veria o ano novo chegar porque eu sei demais. O bilhete é anônimo. Eu pensei que era uma brincadeira e o rasguei. Estava escrito com recortes de revistas. Apesar disso eu achei melhor te comunicar a respeito. Pode ser uma brincadeira, mas pensando melhor pode ter algum fundo de verdade. Realmente, eu sei de coisas que deixariam pessoas importantes e influentes em maus lençóis. De qualquer forma gostaria de conversar com você a respeito. Espero te ver antes da virada do ano. Com carinho, seu tio Evans.”

Pedro – Tio? Tio Evans?

Paulo – Mas todo castigo prá corno é pouco mesmo! Esse daí então era o seu tio?

Sarah – Mas que... Mas que coincidência, não? O seu tio, que agora tá morto, ser o seu tio, não é?

Pedro – Eu não sabia que o Evans tinha parentes. Ele nunca falou nada.

Sarah – Mas sejamos sinceros, não é Pedro? Nem você, nem o papai deixavam ele falar alguma coisa.

Bianca – Eu não entendi. Aliás, eu não estou entendendo nada do que esta acontecendo aqui. O que ele quis dizer com esse negócio de segredos importantes?

Jorge – É! Estavam ameaçando ele de morte, então? Por que ele sabia de alguma coisa! Mas sabia o quê de quem?

Paulo – Sei lá. Alguma coisa

Pedro – Agora com ele morto nós nunca iremos saber.

Allexia – Exatamente doutor Pedro. Exatamente. O que não deixa de ser uma coisa muita boa para o senhor, não?

Pedro (levantando-se furioso) – O que você está querendo insinuar, sua insolente? Você está em minha casa! Eu sou um Juiz de Direito aposentado e exijo respeito não só por isso, mas também pela minha idade.

Allexia (também aumentando o tom de voz) – Respeito que não lhe cabe nesse momento, Doutor

Juiz.

Pedro – Eu sou uma Autoridade!

Allexia – Uma Autoridade aposentada e corrupta.!

Pedro (nervoso) – Não vou admitir esse tipo de comportamento na minha própria casa. Eu conheço pessoas, muitas pessoas que vão acabar com sua carreira e essa sua arrogância rapidinho mocinha.

Allexia – O senhor era uma Autoridade. Era. E além de não ter mais poder sobre nada...

Pedro (a interrompendo) – Eu tenho sim!

Allexia – Não tem mais nada não, doutor Pedro. O senhor não manda mais em nada. Todo mundo já sabe. Não é segredo para ninguém. O senhor está com a corda no pescoço. A promotoria de Justiça vai pedir sua prisão. Todos sabem disso.

Sarah (demonstrando surpresa) – O Pedro? O meu irmão Pedro? Preso? Ué, dessa eu não sabia.

Paulo – Lorota dessa menininha ai! Pura lorota. Eu acompanhei o processo. Não tem prova. Não tem prova nenhuma contra ele.

Jorge (um tanto pensativo) – É! Parece que não há provas.

Paulo – É! Ninguém provou que aquele dinheiro que estava na Suíça era dele.

Jorge – Só que também não se sabe de quem é!

Pedro – Não diga disparates sua detetive de merda! Ninguém tem nada contra mim. Eu sou uma pessoa íntegra. Honesta. Não fiz nada que não estivesse dentro dos ditames da lei. Não tomei nenhuma decisão que não fosse dentro da mais ilibada ordem e direito. Sou honesto, íntegro e inocente. Sou taxado de corrupto, leviano e outras coisas aí porque sigo um ideal de justiça e o ponho em prática. (aponta para o quadro de Maquiavel) Está vendo aquele homem, policial? Está vendo aquele homem? Ele estava certo. Nós, homens de bens e de direito, temos que estar acima do Estado, acima do estado laico de direito imposto por uma assembléia de tolos democráticos e idiotas fascistas. Eu fui, ou melhor, eu sou um digno representante da imposição do Direito para o homem justo e honesto. Eu sou o representante do mais puro exercício da lei e da ordem em prol de uma sociedade justa e igualitária. Eu sou!

Sarah – Gente! Por favor. Calma. Se o Evans sabia ou não de alguma coisa, agora já era, não tem mais jeito. Ele morreu. Não vai poder falar mais nada.

Um breve silêncio se faz na sala.

Allexia (voltando-se para Pedro) – Independente dos fins justificarem ou não os meios?

Pedro (após pensar um pouco) – Independente de tudo que não justifique a aplicação da lei e da ordem.

Bianca (nervosa) – Parem! Parem! Parem com isso! Eu... Eu não estou agüentando mais ficar aqui perto... Perto de um cadáver e de vocês discutindo filosofia. Eu quero ir embora! Eu quero ir embora prá bem longe daqui.

Allexia – Desculpe, mas eu não sei seu nome!

Bianca – Meu nome é Bianca.

Paulo – Minha noiva, viu? Minha noiva! Eu sou homem e por isso tenho uma noiva.

Todos voltam um olhar curioso para Paulo, menos Bianca que o olha de forma repreendedora.

Paulo (acanhado) – Por isso. Tenho sorte. Tenho sorte em ser homem e ter uma noiva tão bonita como ela. É isso! È isso!

Allexia – Pois bem senhora, ou melhor, senhorita Bianca. Primeiro: Como eu disse anteriormente, ninguém sai por enquanto dessa sala até que esclareçamos a morte do meu tio Evans. E segundo. Não estamos apenas discutindo filosofia. Estamos sim discutindo motivos para a prática de um crime.

Sarah – Nossa! Como assim?

Pedro – Você é muito insolente menina. Cuidado com o que você fala. Cuidado.

Allexia – Por que senhor Pedro? Falei alguma coisa que não lhe agradou? É isso mesmo senhora... senhora...

Sarah – Aí! Eu sou a Sarah. Irmã do Pedro e do Paulo!

Allexia – Prazer senhora Sarah. Mas é isso sim. Vocês ouviram o que estava escrito no bilhete. Ele sabia de alguma coisa, sim.

Pedro – Dê-me cá este bilhete. Deixe-me ver isto.

Allexia o entrega um tanto a contra gosto. Após lê-lo rapidamente, Pedro o devolve.

Pedro – Maldição. É a letra dele mesmo. Foi ele quem escreveu essa porcaria.

Jorge (levantando-se surpreso) – Então era isso! Era por isso que viemos parar aqui esta noite?

Allexia – Como assim? Quem é o senhor?

Nesse momento, a porta se abre e dois médicos, carregando uma maca com rodinhas entram na sala. Após serem indicados onde está o corpo vão até ele e fazem alguns exames superficiais, enquanto Jorge continua a falar.

Jorge – Prazer dona. Eu sou o Jorge. Eu trabalhei para esse tipo ai (acena com a cabeça para Pedro) há uns tempos atrás. Mas isso não vem ao caso

Pedro – Não mesmo.

Jorge – A verdade é que todos nós recebemos convites para virmos até aqui hoje. (demonstrando nervosismo) – Viemos aqui por causa de um convite. Um convite enviado pelo doutor Pedro.

Pedro – É! Mas eu não mandei convite algum.

Jorge – Mas então. Quando chegamos todos aqui é que soubemos que ele não havia mandado convite nenhum.

Allexia – E os convites eram iguais para todo mundo?

Paulo – É. Praticamente. Todos vieram pelo correio, nos endereços onde nós estávamos.

Sarah (preocupada) – Um estava assinado e os outros não, não é isso?

Pedro – Sim.

Jorge – O meu e o do Paulo não estavam assinados. O dela estava.

Allexia – E além de vocês ninguém mais chegou? Ninguém mais veio para cá além de vocês?

Todos se entreolham cabisbaixos.

Pedro – Não. Não chegou mais ninguém aqui além deles.

Sarah (levando as mãos ao peito ao olhar para o corpo de Evans sendo examinado) – A não ser a morte. A não ser a morte que veio buscar esse pobre homem...

Após ajudar o colega a colocar o corpo de Evans em uma maca, um dos médicos se aproxima de Allexia, que está próxima a porta e conversa com ela, enquanto o outro empurra a maca com o corpo de Evans coberto por um lençol para fora da biblioteca.

Médico – Ë investigadora. Infelizmente ele está morto mesmo. Teve até que uma morte rápida, apesar de bastante dolorosa.

Allexia – Mas ele morreu como? Ele morreu como doutor?

Médico – Não tenho dúvidas. Aquele homem foi envenenado.

Todos na sala soltam uma exclamação ao ouvirem tal constatação.

Allexia – Envenenado? Logo presumi que isso seria possível.

Médico – Sim. Não há sinais externos de violência. E alguns aspectos do cadáver, como o a língua enrolada, a dilatação das pupilas, o endurecimento demasiado do fígado, além de outras características físicas rotineiramente vistas por nós dão a certeza de que um veneno muito forte causou sua morte.

Paulo (exaltado) – Mas isso é impossível! Isso não pode ter acontecido. Como assim ele foi envenenado? De repente ele comeu carne de porco que fez mal, porra!

Allexia – É possível saber que tipo de veneno foi usado, como foi administrado e quando?

Médico – Isso somente um exame necroscópico poderá revelar, investigadora. Porém, uma coisa é certa: não foi carne de porco ou alergia a algum tipo de bebida ou comida.

Pedro (apreensivo) – Mas então o que pode ter causado a morte dele? Como um veneno vai matar alguém assim?

Médico – Eu não tenho dúvidas de que aquele homem recebeu uma dose letal de veneno. E não um veneno comum, como raticida ou pesticida. Tenho quase certeza de que é um veneno de laboratório, quer dizer, desenvolvido em laboratório. E pela ação fulminante dele não foi ministrado há menos de quarenta e cinco minutos atrás.

Todos se emudecem. Por alguns segundos ouvem-se apenas gotas de chuva caindo no lado de fora, enquanto os presentes na sala, calados, desviam o olhar um dos outros, e principalmente da investigadora Allexia.

Allexia – E como esse veneno foi injetado nele se não há nenhuma marca em seu corpo?

Médico – Bem Investigadora, dependendo do veneno utilizado há várias formas de ministrá-lo na vítima sem ser por meio de punção venosa. Ele pode ter sido envenenado através da pele, do ar, pelas mucosas ou até mesmo o ingerindo. Mas a verdade é uma só: Esse homem foi deliberadamente envenenado. Disto eu não tenho dúvidas. Ele foi assassinado.

Allexia (demonstrando estar apreensiva) – Meu Deus! Pobre tio Evans! Que Deus tome conta de sua alma.

Médico (esticando a mão para Allexia) – Sinto muito investigadora. Eu sabia que era o seu tio, mas infelizmente a morte dele foi horrível. Ele sofreu muito. Muito mesmo.

Enquanto Allexia recebe os pêsames do médico, os demais se sentam novamente.

Bianca (nervosa) – Ah! Não pode ser! Não pode ser! Droga! Droga! Droga! Como é que fui me envolver nisso? Como? Como?

O médico sai.

Paulo – Escuta! Isso tudo não faz sentido, pô? Quem poderia querer matar um porra de um mordomo no último dia do ano, cacete?

Allexia – Por favor, meu senhor. Tenha mais respeito. Além de mordomo ele era o meu tio e agora está morto. Morto. Envenenado. Envenenado por um de vocês!

Todos se surpreendem. Pedro bate a mão na mesa e levanta-se em de forma brusca.

Pedro (gritando) – Mas que acusação infundada é essa garota? Não vou admitir que você venha me acusar pela morte do Evans. Não mesmo. Não mesmo.

Paulo – Escuta menininha! Você tá louca! Pirou! Ninguém aqui matou ninguém. Isso não aconteceu aqui. Ele deve ter tomado esse veneno que o médico disse não aqui. Não aqui dentro.

Sarah – Coitadinha. Acho que você tá nervosa porque foi o seu tio que morreu, não é minha filha? Você deve estar sentido muita raiva por dentro e agora acusa qualquer um pelo o que aconteceu. Eu entendo. Eu entendo seus sentimentos.

Bianca (nervosa) – Que seja! Que seja! Que ela esteja nervosa pela morte do tio, do mordomo, sei lá o quê! Mas isso não lhe dá o direito, seja policial ou não, de nos acusar de uma coisa que ninguém aqui cometeu.

Jorge – É! Pelo menos assim parece né.

Todos se voltam para ele que, de forma tranqüila, acende um cigarro e dá uma profunda tragada.

Allexia – Como assim senhor Jorge? O senhor acha o contrário?

Pedro – Esse qualquer aí não acha nada. Só tá querendo aparecer.

Jorge – Não, doutor Pedro. Não estou não. Mas era só isso mesmo que faltava. Uma morte. Uma morte para justificar nossa presença aqui. Para justificar porque nós recebemos convites que não foram enviados por você para estarmos aqui essa noite. Justamente essa noite.

Sarah – Ai! Me desculpe, Jorge! Mas eu não estou entendendo nada. O que você quer dizer com isso?

Jorge – Que isso justifica o envio dos convites para nós virmos aqui esta noite. Para isso. Justamente para isso. Para que fossemos incriminados pela morte do Evans.

Pedro – Não seja estúpido. Quem iria fazer isso contra nós? Quem?

Paulo – É isso mesmo, viu Jorge! Quem ia fazer isso com a gente? Prá quê? Como ninguém aqui matou esse... Esse... Cidadão aí, não tem porque juntar a gente aqui prá isso. Seria mais fácil o assassino ter dado um tiro na cabeça dele no meio da rua. Não tem lógica isso. É muita burrice. Trazer a gente aqui prá quê? Prá servir de testemunha da morte dele? Nada a ver.

Allexia – Sim. O senhor Paulo tem razão. Se o senhor Pedro não enviou os convites e se todos vocês chegaram aqui ignorando quem viria também, de fato não existe um nexo entre os convites e a morte do meu tio.

Paulo – Sim! Sim! É o que eu estou falando.

Allexia (fazendo suspense) – Mas, e se enquanto vocês estiveram reunidos aqui souberam, se já não sabiam, que o meu tio soube ou ouviu alguma coisa, viu, presenciou, sei lá, alguma coisa que lhes fossem prejudicial de alguma forma, nada também mais lógico de eliminá-lo, pois ele poderia prejudicar algum de vocês. ( E branda o bilhete de Evans com veemência). Alguém que, por exemplo, soubesse que ele sabia demais.

Jorge – Mas o que ele poderia saber de nós?

Ele olha para todos que ficam mudos e não respondem a sua indagação. Um tanto sem jeito, ele pergunta novamente.

Jorge – O que ele poderia saber sobre nós?

Pedro – Isso é besteira policial. Isso são ilações, conjecturas vis de uma pessoa que esta perturbada pela perda de um ente querido. Ë só isso.

Sarah – Ninguém aqui tem motivos para querer matar o pobre do Evans!

Paulo – Ele devia tá doente, com mania de perseguição. Essas coisas são fogo. O cara fica doido.

Bianca – Então é isso? (Ela se volta para Allexia) Você está dizendo que um de nós matou aquele pobre coitado? É isso mesmo? Era só o que me faltava mesmo! Ser acusada da morte de um homem que eu nem conheço.

Paulo – Escuta, ô menininha da policia. Você não tem provas de nada. Primeiro, a gente nem sabe do que ele morreu!

Sarah – Segredos todos temos. Grandes ou pequenos todos temos.

Jorge – É. E tem mais. Não é assim que se resolve as coisas não. Vamos ter que abrir um Boletim de Ocorrência, depois um Inquérito, prá só depois ver se existem provas ou alguma coisa que indiquem que realmente um de nós matou esse mordomo ai.

Pedro – No mais, policial, trata-se apenas de uma pura masturbação intelectual. Idéias que não vão nos levar a lugar nenhum.

Sarah – Ai! Eu gostaria de estar em outro lugar mesmo. Qualquer outro lugar. Na Praça Chámps Elisé, ou no Coliseu; na Austrália ou numa ilha qualquer do Oceano Indico ao invés de ficar enfurnada dentro de uma biblioteca onde um homem acabou de morrer e agora tem uma mulher dizendo que ele foi assassinado por um de nós. Que absurdo! Mas que absurdo!

Pedro – Bem... Acho que agora você entendeu sua atual situação, não policial? Sem provas, sem acusações.

Allexia – Mas vocês não podem ignorar que um homem morto acabou de sair daqui.

Jorge – Sem provas, sem acusações.

Allexia – Um homem que comunicou a Policia que recebeu uma ameaça anônima.

Bianca – Sem provas, sem acusações.

Allexia – Um homem honesto, trabalhador, que desenvolveu suas atividades sempre ao pé de pessoas conhecidas, influentes e poderosas, que, verdade ou não, escondem ou esconderam segredos que, possivelmente, ele tomou conhecimento.

Paulo – Escuta, presta atenção menininha! Sem provas, sem acusações

Allexia – Um homem que, segundo o médico, foi envenenado e acabou deixando a vida sem deixar provas ou indícios de quem de fato o teria matado.

Sarah – Ai querida! É Isso mesmo. Agora você chegou ao ponto que estamos falando desde o começo. Sem provas, sem acusações, não é mesmo?

Faz-se silêncio novamente na sala. Os presentes, demonstrando segurança, olham com superioridade para a policial.

Allexia – A não ser um controle remoto!

Todos ficam perplexos com sua fala. Olham-se curiosos e ao mesmo tempo com um semblante visivelmente preocupado.

Pedro - O que você está dizendo? Controle remoto?

Allexia (tirando o acessório de dentro do bolso do seu casaco e o mostrando a todos) – Isso mesmo! Um controle remoto. Veio junto com o bilhete encaminhado por ele (dando um sorriso sarcástico). Desculpem-me. Mas eu não li todo o bilhete. Havia uma notinha no verso da folha (torna a abrir o bilhete). Ouçam. “ Se alguma coisa acontecer comigo, por favor, use o controle com o telão que esta atrás do quadro de Maquiavel na biblioteca. Espero que ajude!”

Jorge – Telão? Atrás do quadro? Que telão?

Todos se voltam para o quadro de Maquiavel, enquanto Allexia vai até ele.

Pedro – Ei! Cuidado com o quadro do meu mentor! Essa peça é muito rara!

Allexia – E quem o pintou?

Pedro – Eu mesmo! Em homenagem a essa mente brilhante.

Bianca – Ah... Agora entendi o motivo do mau gosto.

Antes que Pedro pudesse divergir com Bianca, Allexia, com a ajuda de Jorge, viram o quadro de Maquiavel, revelando por detrás dele um telão.

Paulo – Porra, Pedro! Você pintou o quadro atrás de um telão prá quê?

Pedro – Eu não sei o que este telão está fazendo ai atrás. Quando eu pintei o quadro não tinha nada disso. Eu nunca percebi esse negócio ai.

Sarah – Mas... Quem então colocou esse negócio ai?

Jorge – Só pode ter sido o Evans.

Bianca – Mas que cara sacana! Então, ele queria aprontar alguma coisa mesmo com a gente.

Allexia – Ou melhor, senhorita Bianca: Revelar alguma coisa de vocês.

Pedro – Parem. Parem. Podem parar com isso. Tem algo muito esquisito por aqui. O Evans não teria colocado esse telão aí a tôa. Ele queria fazer alguma coisa para me prejudicar. Um complô.

Jorge – Prá mim só existe uma explicação. Aquele mordomo sabia o que ia acontecer aqui. Os convites, nós todos reunidos aqui...

Forçosamente faz uma pausa e olha para todos antes de concluir.

Jorge – De repente... De repente ele já até sabia que... Que.... Que, de alguma forma, ele ia morrer.

Todos, menos Allexia, ficam horrorizados com a constatação de Jorge.

Paulo – Escuta, ô! Não fala besteira! Não fala besteira! Você tava aqui com a gente. Você viu que ninguém deu nada para ele. Ele caiu duro ali no chão sozinho.

Pedro – Como ele pode saber que iria morrer se ele mesmo não esperava ninguém aqui hoje? Sabia que eu estava saindo de viagem, quer dizer, que estava me preparando para viajar...

Bianca – Mas o que tem esse telão? O que tem esse controle remoto?

Sarah – Um telão e um controle remoto servem apenas para assistir televisão, meus queridos.

Allexia – Eu concordo com o senhor Jorge. O meu tio devia saber que alguma coisa estranha ia acontecer aqui hoje. Algo contra sua vida.

Pedro – Mas isso é impossível! Se ele recebeu uma ameaça de morte anônima, como ele poderia saber que poderia ser um de nós? Se de fato alguém aqui matou ele, né?

Bianca – Exatamente! E como ele saberia que iria morrer justamente hoje?

Allexia – A não ser que ele estivesse esperando o assassino.

Todos se emudecem por alguns instantes.

Sarah – Então, ele teria mandando o convite para o seu assassino? É isso o que você está querendo dizer?

Allexia – Sim. Talvez seja isso. Não sei se ele mandou os convites para vocês, mas sabendo como o meu tio era inteligente e perspicaz, ele, de alguma forma, tratou de se proteger de alguma visita inesperada, digamos assim. Nesse caso, a visita do próprio assassino.

Paulo (gargalhando de forma nervosa) – Ótima piada! Ótima piada! O cara então é um tremendo Mané. Sabe que vai morrer e mesmo assim fica esperando o outro matar ele. Gente, isso não existe. Só em filme de ficção ou livro da Agatha Christie.

Jorge – É irracional pensar um negócio desses. Ninguém aqui matou ele. E se ele mandou o convite para o seu assassino, ele não apareceu ou se escondeu no jardim lá fora.

Pedro – A verdade policial é que ninguém aqui matou o seu tio. A única verdade é esta. Se ele enviou os convites falsificando minha assinatura, ou estragou o meu quadro de Maquiavel colocando essa droga de telão atrás é outra coisa. Não houve assassinato nesta biblioteca detetive. Não houve, você me ouviu bem?

Allexia (direcionando o controle remoto para o telão) – Então, vamos ver porque o meu tio me enviou esse controle remoto.

O aparelho liga. Aos poucos vai formando uma imagem. Percebe-se então que a imagem é da biblioteca, focalizando abertamente todos ali presentes olhando para o telão.

Paulo – Ei! Somos nós! Somos nós!

Sarah – É verdade. Tá passando a gente no telão.

Bianca – Mas o que a gente tá fazendo lá? Como a gente tá lá?

Pedro (enfurecido) – Desgraçado! Desgraçado! Ele colocou uma câmera aqui na biblioteca. Ele colocou uma câmera aqui dentro!

Jorge (olhando pela sala) – E pelo posicionamento da imagem vem dali (aponta para a arandela ao lado da estante). O pilantra colocou uma câmera naquela arandela!

Demonstrando raiva, Pedro pega um atiçador da lareira e, ignorando as suplicas dos demais presentes, vai até a arandela e desfere um golpe certeiro no objeto, fazendo com que uma câmera de pequeno porte se estilhace ao cair no chão.

Sarah – Nossa! Havia uma câmera aqui.

Bianca – Por isso ele ficava mexendo toda a hora nessa arandela. Ele ficou um tempão mexendo nela.

Pedro fica a mexer no aparelho.

Pedro – Não tem fita! Essa maldita câmera não tem fita.

Paulo – Então ele não gravou nada. Ela ficou ai, mas não gravou nada.

Todos concordam sem esconder um certo alívio.

Allexia – Será mesmo? Vamos ver o que acontece quando eu aperto a tecla forward.

O telão, que havia se apagado, volta a ligar e a registrar cenas da biblioteca de trás para frente.

Jorge – Filho da mãe! A câmera deve ter gravado tudo em um vídeo cassete ou DVD. Mas onde esta o aparelho? Onde está?

Tanto Jorge quanto Pedro, com o atiçador em mãos, se aproximam do telão procurando pelo posicionamento do aparelho, fazendo com que Allexia volte a empunhar sua arma e os obrigue a se distanciar.

Allexia – Senhores, por favor! Nem pensem em chegar perto do telão. Nós agora vamos ver o que foi gravado. Nem pense em quebrar mais alguma coisa doutor Pedro.

Pedro (demonstrando raiva) – Mas ele não pode fazer isso. Ele gravou o que ai? O que ele gravou ai? A casa é minha. Eu não o autorizei a realizar imagens minhas. Eu não o autorizei.

Allexia – Não se preocupe, doutor Pedro. Sem provas, sem acusações. Se não houver nada gravado e se não virmos nada que o incrimine, o senhor poderá destruir a biblioteca atrás deste videocassete ou DVD. Mas por enquanto vamos assistir ao que o meu tio deixou gravado.

Todos se emudecem na sala. A contragosto, Pedro volta a se sentar junto a escrivaninha, sem soltar o atiçador da lareira. Jorge e Paulo também se sentam, vindo este último a consolar Bianca.

Paulo (passando as mãos em seu cabelo) – Calma. Calma. Isso já vai passar. Isso já vai passar.

Repentinamente as imagens param

Aparece então Evans, próximo a arandela onde estava a câmera. Ele fica a ajeitá-la e, após um breve suspiro, olha para ela e desabafa:

Evans – Então é isso. Espero que essas imagens nunca sejam vistas por ninguém. Espero que minhas preocupações sejam apenas anseios insensatos e minhas suspeitas puros devaneios... Mas a verdade é que sinto que corro risco de vida. Pode ser bobagem, uma ilusão criada pela minha cabeça... A ameaça... Depois que recebi aquela ameaça... Sinto, alguma coisa me diz, algo me diz que a morte se aproxima. Não sei como, nem sei pelas mãos de quem, mas sinto que não posso fugir desse meu destino. Espero que não seja quem eu pense que é. Talvez o fato nem se dê nesse local agora, onde instalei a câmera... Na verdade, se ele quiser me matar, o melhor local para isso seria aqui na biblioteca. Ah...Tudo o que fiz para ele e sua família, tudo o que fiz visando seu bem estar... Espero que nada disso seja necessário. E que o doutor Pedro não venha a me matar (ele olha subitamente para trás. Algumas vozes destoantes se ouvem ao fundo. Ele se volta para a câmera.) Se você por acaso ver essa fita Allexia, é porque eu já me fui. Me perdoe. Tenho certeza de que você irá descobrir toda a verdade. Te amo. (e sai em passos apressados pela porta).

Allexia parece segurar uma lágrima em seu rosto, enquanto os demais se voltam para Pedro que se mantém rígido na cadeira.

Enquanto a imagem da biblioteca vazia fica aparecendo no telão, Sarah fala.

Sarah – Pedro, o que ele quis dizer com isso?

Bianca – Você ia matar ele? Você ia matar ele aqui na Biblioteca?

Pedro (forçosamente descontraído) – Para ser sincero eu perdi a conta das vezes que disse que iria matá-lo.

Todos fazem um ar de espanto.

Pedro – É verdade. Eu sempre disse isso a ele. E não foi apenas em segredo não. Podem perguntar para todos os meus outros empregados. Evans era um mordomo em final de carreira. Não tinha os mesmos dons de antes. Eu o conhecia bem. Sempre trabalhou para o meu pai, antes mesmo da mamãe morrer. De uns tempos prá cá deu para se meter em tudo, nos meus negócios, na minha vida particular. Por muitas vezes pensei em demiti-lo, mas acabei sempre ignorado suas atitudes intrometidas. Realmente, eu disse várias vezes que se ele continuasse a bisbilhotar a minha vida e os meus negócios eu iria matá-lo. Isso não é segredo para ninguém. De fato até pensei nisso mais de uma vez.

Tremendo e olhando com ódio para Pedro, Allexia faz menção em apontar sua arma para o magistrado, que ainda mantendo uma postura tranqüila arremata.

Pedro – Calma policial. Calma. Apesar de seu tio ter suspeitas contra mim, eu nunca fiz nem mandei fazerem nada contra vida dele. E pensar em matar uma pessoa não é crime. Pelo o que ele falou agora na gravação e o medo que ele demonstrava ter, tenho certeza de que ele não esperava que eu realmente viesse a lhe dar um fim.

Jorge – Mas ele falou com todas as letras que acreditava que você pudesse fazer isso.

Pedro – Então porque ele não fugiu? Por que ele disse que não sabia como, nem pelas mãos de quem? Ele citou o meu nome só para me fazer perder a paciência... Como ele sempre fazia. No fundo ele sabia que eu não iria fazer nada contra ele.

Paulo – Escuta. Isso tudo é verdade. O Pedro nem encostou a mão nele.

Allexia (refazendo-se do ódio) – Mas o meu tio foi envenenado. Ninguém atirou nele, o esfaqueou ou bateu com algo em sua cabeça. Ele foi envenenado.

Bianca – Mas como, meu Deus do céu?

Sarah – É! Mas como?

Todos voltam sua atenção para a imagem do telão, pois vêem e ouvem agora Pedro entrando por ali e repetindo toda a cena inicial, entrando na biblioteca, falando ao celular, depois Evans, Evans saindo, Pedro queimando os papéis. De repente há um corte. O telão fica escuro.

Jorge – Éi! Por que parou? Que papéis eram aqueles que ele estava queimando?

Pedro (nervoso) – Isso não é da sua conta seu idiota.

Paulo – Nossa! Que papéis seriam aqueles, hein maninho?

Bianca – Devem ser mesmo muito importantes... Para ele queimar com Bourbon...

Sarah – É! E você ia viajar mesmo, não é? Que coisa interessante!

Pedro nada responde. Apenas fica fitando a todos com ódio nos olhos.

Repentinamente a imagem volta, mostrando agora Sarah entrando na sala, beijando Evans, pedindo um papel ou um lenço para tirar o batom e depois indo cumprimentar Pedro. Nesse instante, Allexia pára a exibição atônita.

Allexia – Ei! Espere um pouco. Por que você fez isso? (pergunta de forma intimidatória para Sarah, que assustada leva a mão ao peito)

Sarah (nervosa) – Mas o quê? O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz?

Allexia – Você cumprimentou meu tio com um beijo.

Sarah – Sim. Sim. Eu cumprimentei. E daí? Eu cumprimento todo mundo com dois beijinhos na face. Charme francês, querida. Isso é chique.

Allexia – E porque depois você pediu para ele um lenço para tirar o batom antes de beijar o seu irmão?

Todos olham para ela intrigados. Sarah dissimula.

Sarah – Ora... Eu sei lá. Eu tirei porque... Porque... O Pedro não gosta de ficar com marca de batom. Por isso.

Sarah olha para Pedro de forma desesperada, e após alguns segundos ele acena afirmativamente com a cabeça.

Pedro – É verdade. Eu odeio marca de batom.

Bianca – Então porque você não tirou antes?

Allexia – Vamos ver a cena de novo.

Após voltar a cena até a entrada de Sarah na biblioteca, Allexia dá um zoom na imagem, ficando nítido o ato de Sarah beijar Evans e depois limpar o batom.

Allexia – Vocês se lembram do que o médico disse?

Paulo – O quê? Lembrar do quê?

Allexia (olhando com determinação para Sarah) – Ele disse que meu tio podia ter sido envenenado através da pele.

Todos se emudecem. Até Bianca exclamar.

Bianca – Nossa! O batom.

Sarah (nervosa, levantando-se da poltrona) – Ei! O que vocês estão querendo insinuar, hein? Que eu, que eu passei batom envenenado para beijar o Evans? Se fosse assim eu teria morrido também. Eu também tinha morrido.

Allexia – É claro que não. Todos nós sabemos que existe uma forma de proteger os lábios de um batom com veneno, e desde que não haja contato com a região interna da boca ou com a língua, não há problema algum para a assassina que o usar.

Sarah (gritando) – Mas eu não sou uma assassina! Eu posso provar! Meu batom não estava envenenado. Vejam. Eu posso provar (passar a mexer no interior de sua bolsa de forma insistente, sobre os olhares incrédulos dos demais). Meu batom. Meu batom! Meu batom não está aqui na bolsa! Eu tenho certeza de que estava aqui. Ah! Talvez eu o tenha deixado no toucador quando cheguei. Sabe, tava chovendo, e aí borrou um pouco a minha maquiagem e eu fui retocar. Se vocês quiserem eu posso ir lá pegar e...

Allexia – Não! Por enquanto não há necessidade. Fique onde a senhora esta. E sentada.

Sobre os olhares discriminatórios dos demais, Sarah senta-se de forma compenetrada.

Sarah (aturdida) – Não me olhem assim. Não me olhem assim. Eu não matei o Evans. Eu gostava muito dele. Ë verdade. Eu nem tinha motivos para querer fazer isso com ele

Jorge – A não ser que ele soubesse alguma coisa sua, algum segredo seu.

Sarah (nervosa) – Segredo? Que segredo? Eu não tenho nada a esconder de ninguém. Minha vida de socialite sempre foi um livro aberto.

Pedro – Tem certeza de que não há nenhum segredo na sua vida mundana de socialite, irmãzinha?

Sarah – O quê? Você esta querendo insinuar o que, Pedro? Que eu estou quebrada, é isso? (ela levanta-se imperiosa) É verdade. É isso mesmo. Estou quebrada. Falida. Sem dinheiro. Vivendo de aparências e de conveniências. Evans sabia disso. Ele sabia porque eu sempre ligava para cá procurando por você, Pedro, para fazer um empréstimo. Prá te pedir dinheiro. Você sabia das minhas dificuldades. O Evans também devia saber. Tá! Eu confesso. Não posso ter vergonha disso. Eu não tenho dinheiro. Não tenho nada. Vivo de imagens. Por isso eu sempre pedia dinheiro emprestado para o Pedro. E para pagá-lo eu desviava dinheiro do Orfanato que presido. Eu sempre dava um jeito de pagar. E se for crime desviar dinheiro de chá beneficente para pagar minhas dívidas eu sou culpada. Pronto. Eu assumo. Eu sou culpada. Mas não matei ninguém. Não matei ninguém. Não tenho medo de revelar isso para ninguém.

Jorge – Mas que sem vergonha! Desviando dinheiro de chás beneficentes para pagar os empréstimos com o irmão... Êh família!

Paulo – Escuta! Olha o respeito com a família, hein?!

Sarah (ainda nervosa) – Eu não tenho mesmo de onde tirar dinheiro. Não tenho. Não tenho mais aquela minha beleza exuberante, não promovo mais aquelas festas de gala, bailes que duravam noites inteiras, reveillons deslumbrantes. Vivo de nome. Vivo de fotos. E embora Evans até soubesse disso, eu jamais o mataria. Jamais. E desviar dinheiro de chás beneficentes pode não ser uma atitude altruísta, eu concordo, mas é bem menos grave do que desviar dinheiro de outros lugares, não é Pedro?

Allexia – O que a senhora está querendo insinuar, senhora Sarah?

Frente ao olhar austero e fulminante direcionado por Pedro, Sarah respira fundo e senta-se novamente, fazendo um ar de resignação.

Sarah – Nada. Eu não quis dizer nada. Eu só falei o que veio na minha cabeça. Não foi nada demais.

Automaticamente, a exibição retorna ao telão, chamando de volta a atenção dos presentes.

Surge agora Jorge sendo mal recebido pelo Juiz Pedro

Allexia – Pelo visto há muita animosidade entre vocês, não?

Pedro – Coisas do passado. Isso não lhe interessa policial.

A cena continua, agora com Paulo e Bianca chegando.

Paulo – Ei Bibi! Agora somos nós chegando.

Allexia pára a exibição e dá um zoom quando Bianca está abraçando demoradamente Evans, parecendo lhe dizer alguma coisa.

Allexia (perguntando para Bianca) – Pelo abraço que você deu nele parece que se conheciam há tempos, não é?

Bianca (com desdém) – Desculpe dona Investigadora, mas eu sou uma pessoa muito afetuosa e educada. Não tenho discriminação com ninguém. Me dou bem tanto com a gentalha tanto com quem tem dinheiro. Eu sou muito humilde, sabe? E eu não sabia que manifestar consideração pelos outros é crime!

Allexia – Mas o que você falou no ouvido do meu tio? Veja, está claro que você disse alguma coisa para ele.

Bianca (não escondendo o nervosismo) – Credo gente! Eu não falei nada demais. Só dei um abraço e desejei Feliz Ano Novo, ora essa!

Allexia deixa a exibição continuar.

Pedro – Engraçado. Isso é muito engraçado. Eu sei que Evans tinha todos os defeitos do mundo. Era intrometido, gostava de dar suas opiniões, falava muita bobagem. Mas mal educado ele não era.

Allexia – Como assim?

Pedro – Se ela desejou feliz ano novo para ele, com certeza ele teria desejado o mesmo. Mas dá prá ver que ele nem abriu a boca.

Allexia pára a exibição e volta alguns segundos para trás, soltando a gravação a partir do ponto em que Bianca abraça Evans. Todos então se espantam ao constatarem a observação de Pedro.

Bianca (alterada) – Eí! Sem essa. Não venham com essa não. Eu não tenho culpa se o defunto lá não respondeu. Eu só desejei Feliz Ano Novo e o infeliz não respondeu oras, fazer o quê? Além do mais, com um abraço não dá para envenenar ninguém, dá dona investigadora?

Allexia não responde. Pára a fita e volta a gravação várias vezes, analisando o abraço de Bianca em Evans.

Nervosa, Bianca se levanta da poltrona.

Bianca – Eu não matei ele nem ninguém. Não tenho motivos ou segredos para matar ninguém, Eu nem conhecia esse cara ai, esse Evans. Quem só pode ter matado ele foi essa beijoqueira assassina aqui (aponta com veemência para Sarah). Foi ela quem beijou ele com batom envenenado. Eu nem beijei ele.

Paulo (espantando) – Mas Bianca. Ela é a minha irmã.

Ultrajada, Sarah se levanta também da poltrona.

Sarah – Sua mentirosa deslavada. Você é uma tremenda mentirosa. Quem é você, hein sua garotinha de programa? Eu já entendi tudo, quer saber? Eu já entendi tudo! Você nem nos Estados Unidos esteve. Você nem deve saber onde fica a Estátua da Liberdade. Você é uma impostora. Embusteira.

Bianca – Assassina! Assassina!

Sarah – Sua trambiqueira! Vadia!

Allexia – Calma. Calma. Todos vão com calma, por favor. Depois vamos esclarecer tudo isso. Apesar do que está gravado aqui eu também acho muito prematuro acusar a senhora Sarah pela morte do meu tio. Assim como a Bianca.

Pedro – Ë como eu falei prá você, policial. Não há provas contra nós. Não há.

Novamente a atenção de todos é chamada para o telão, no momento em que Evans é visto acendendo um charuto para Pedro, dá uma baforada, entrega-o para seu patrão e sai da biblioteca. A seguir, Pedro pega o charuto e o joga fora. Nesse ponto Allexia pára a exibição.

Allexia (estupefada) – Eu não acredito! Sinceramente eu não acredito no que eu estou vendo! Parece que todos vocês, com exceção ainda do senhor Paulo e do senhor Jorge, pediram ou fizeram alguma coisa para o meu tio que não é usual.

Todos se entreolham sem entender o que ela está falando.

Allexia – Por que vocês pediram a Evans? Sim. Porque vocês pediram para ele fazer alguma coisa ou aceitar algo que não é comum, que não é usual pedir ou fazer com um mordomo?

Bianca – O que é não é usual?

Pedro – Como assim? Pedir o que para ele? Fazer o quê?

Allexia – Vejam. Primeiro, a senhora. Sarah lhe cumprimenta com beijos na face e depois lhe pede um lenço para limpar o batom.

Sarah – Mas eu expliquei o porquê.

Allexia – Não, não. Tudo bem. Mas isso não é costumeiro, não é usual. Depois foi a vez da Bianca lhe dar um abraço afetuoso e lhe desejar feliz ano novo, enquanto que com o senhor Pedro ela apenas lhe apertou a mão.

Bianca – Hump! Não vejo nada demais gostar de gente que trabalha ao invés de gente que roba.

Jorge – Não é roba. É rouba!

Pedro – Esse verbo você sabe declinar muito bem, hein Jorge?

Jorge – Claro... Tendo aulas com um catedrático como você

Allexia – Por favor. Vocês querem calar a boca. Mas continuando. Agora foi o doutor Pedro, que pede para o meu tio acender um charuto e depois o joga fora, sem antes lhe dar uma tragada sequer.

Pedro (falando com sobriedade) – Eu não quis mais fumar, ora essa! O charuto era meu, o mordomo era meu e eu fiz o que eu queria. Qual é? Querem insistir ainda que eu matei o Evans? Como? Provem! Provem!

Jorge – Essa é fácil. Com o charuto envenenado! Ele aspirou a fumaça e inalou o veneno.

Pedro (nervoso) – Não diga besteiras seu idiota! Os meus charutos são importados. Ficam aqui na minha gaveta. Eu nunca manipulei ou adulterei eles. Eu posso provar que não dei nenhum charuto envenenado para o Evans.

Jorge (em tom desafiador) – Então prove, oras (ele vai até a lareira, pega um atiçador, mexe no interior da lareira e retira de lá, ainda intacto, o charuto que foi aceso por Evans, entregando-o posteriormente para Pedro). Prove. Prove agora para nós. Acenda-o e o trague. Vamos lá. Dê uma boa tragada! Encha bem os pulmões!

Contrariado e sob os olhares atônitos dos demais, Pedro pega o charuto das mãos de Jorge praguejando muito. Olha o fumo, o manuseia com cuidado, mas não o aproxima do nariz. De repente se livra dele.

Pedro (jogando o charuto na lixeira) – Eu não tenho que provar nada para vocês. Eu não envenenei o estrupício do Evans! Esse traste (aponta para Jorge) é quem está querendo me incriminar.

Bianca – Ora, então fume o charuto. Ou vai fazer como sua irmãzinha e jogar o charuto fora assim como ela fez com o batom.

Sarah – Cale a boca sua ordinária!

Bianca – Sua ladra decadente!

Allexia – Ei! Calem-se! Calem-se! Chega de discussão. Faltam ainda duas pessoas para serem ouvidas; ou melhor, vistas.

Mas antes que Allexia pudesse prosseguir, Pedro dá um salto da cadeira e um murro na mesa, apontando a seguir atônito para o telão que continuava a exibição.

Pedro – Ei! Olhe lá. Olhe lá. Volte a gravação investigadora. Volte a gravação.

Todos se voltam para o telão no exato momento em que Evans esta servindo uma bebida para Jorge.

Pedro – Volte um pouco. Volte até o ponto em que Evans se aproxima dele.

Allexia assim age.

Pedro (excitado) – Agora de um zoom. Dê um zoom. Aproxime mais a imagem.

Allexia novamente atende ao pedido de Pedro, vendo então claramente o momento em que Jorge, de costas para a câmera, saca do bolso do paletó um frasco de comprimido e repassa uma drágea para Evans, que a põe na boca e ingere um pouco de água a seguir. Assim que se afasta de Jorge, este pega o frasco e o joga pela janela.

Pedro (estampando um sorriso de satisfação nos lábios) – Morte por envenenamento. Morte por envenenamento. Ai está uma prova insofismável.

Todos se voltam para Jorge. Este atônito, levanta-se e fica em pé próximo ao telão.

Jorge (falando rápido e notoriamente nervoso) – O quê? O que vocês estão achando? Aquilo era comprimido. Apenas comprido. Ele estava com dor de cabeça e eu tinha aspirinas. É. Eu acho que era aspirinas. Ele tinha ficado nervoso com a discussão e por isso eu dei aspirinas para ele. Era remédio gente. Era remédio.

Allexia – E porque o senhor jogou o frasco pela janela?

Pedro (regozijando-se) – Além de matar o meu mordomo sujou o meu jardim, seu inútil.

Jorge – O frasco de aspirina havia acabado ora essa.

Todos ficam a olha-lo incrédulo.

Jorge (demonstrando tranqüilidade) – Bem, o frasco tá lá fora. É só ir lá e pegar. Façam um exame e vejam se havia veneno lá ou se era apenas remédio para dor de cabeça.

Pedro – Você é um nojento infame mesmo. Você deu o veneno para o Evans, não foi? Admita seu verme!

Jorge – Fume seu charuto, Juiz. Fume o seu charuto. Vamos ver quem tem razão.

Faz-se um silêncio na sala. Pedro e Jorge ficam se olhando com ódio nos olhos, enquanto o telão continua a passar as imagens, quando pára repentinamente.

Bianca – Engraçado. Se isso é uma gravação, porque fica cortando as imagens?

Antes que alguém pudesse responder, Paulo se antecipa.

Paulo – Escuta, ô menininha investigadora! Você acha que eu também matei o seu tio? Sim, porque até agora todo mundo matou ele, não é mesmo? A Sarah com o batom, a Bibi com um abraço e o Pedro com a fumaça do charuto. Qual é! Vamos parar com isso. Nós estamos no Brasil gente. No Brasil. Esse negócio de colocar veneno no batom, no charuto, sei lá onde é coisa de estrangeiro. Prá que que alguém aqui ia fazer tudo isso para matar um mordomo? Prá quê?

Allexia responde enquanto aciona novamente a exibição no telão.

Allexia – Então me responda o senhor, senhor Paulo? Se ninguém tinha motivos para tanto, se ninguém daqui é ardiloso para tanto, se todos vocês vieram por acaso até aqui, me responda então por que um homem, que recebeu dias antes uma ameaça de morte, morre envenenado aqui, neste lugar, na presença de você, deixando gravando seus últimos momentos de vida, pois temia que algo de ruim poderia lhe acontecer? Responda-me então.

Paulo fica em silêncio, pois a atenção de todos volta-se para o telão que exibe a cena onde ele e Evans discutem, tendo Paulo lançado no rosto de Evans a champanhe que estava em sua taça, ao tempo em que despedaçava a garrafa e partia para cima dele com o gargalo quebrado.

Bianca (desdenhando da situação) – Já sei! Já sei! Agora a dona Investigadora vai dizer que o Paulo colocou veneno na champanhe e jogou no rosto do Evans que assim foi envenenado, não é isso?

Allexia não responde.

Paulo – É brincadeira! Não tinha veneno nenhum na garrafa. Eu comprei a champanhe no free-shop do aeroporto quando cheguei em Congonhas. Guardei para abrir só aqui, o desaforado do mordomo vem dizer que eu bebia porcaria...Então eu joguei a champanhe nele e o matei. Porra! Então o cara tava certo! Aquela porcaria não prestava mesmo.

Todos, menos Allexia, soltam gargalhadas.

Allexia – Mas tirando o fato do senhor ter se indisposto com ele por causa da marca da bebida, não havia mais nada que pudesse justificar sua raiva contra ele?

Paulo (demonstrando nervosismo) – Não! Não! É claro que não. Eu sou um cara de paz. Político. Todo político tem uma vida pública conhecida. Não devo nada para ninguém, tenho minha consciência tranqüila.

Allexia – Mas não foi isso que eu ouvi dos outros aqui presentes.

Paulo olha para cada um de maneira incisiva.

Paulo – Não de atenção a eles investigadora. Eu nunca tive problemas com a Polícia. Mal entendido, um ou outro vai lá. A gente tem porque tem uma vida pública, estamos sempre na mídia, em foco, mas eu sou um homem tranqüilo, respeitador, noivo.

Sarah (irritada) – Pare! Pare com isso Paulo! Pare de contar mentiras, droga. Chega disso. Fale a verdade. Fale a verdade. Assuma. Assuma o que você é de uma vez por todos. Não fique dizendo por ai que você vai se casar com essa vadia. Fale a verdade. Assuma! Todos sabem que você é gay. Você é gay!

Jorge – Grande novidade.

Paulo (desajeitado) – Escuta aqui, ô maninha! Quem te deu autorização para falar assim da minha vida? Quem você tá pensando que é para ficar espalhando essas coisas por ai?

Sarah – Sou apenas a sua irmã mais velha! Só isso!

Paulo – E daí? E daí? Fique com suas rugas que eu fico a minha vida, tá legal?

Jorge – É, mas se uma notícia como essa chega na cidade onde o senhor é candidato a prefeito com certeza arruinaria sua campanha.

Allexia – Com certeza seria uma péssima notícia.

Paulo – Escuta! Eu não lhes devo satisfação da minha vida política, me compreende? Nem da minha vida política nem da minha vida pessoal. Eu tava pouco me lixando para que aquele idiota do seu tio sabia ou não da minha vida. O que ele sabia ou deixava de saber não me importava.

Allexia – A não ser que ele soubesse mais coisas.

Paulo fica com um ar pensativo.

Paulo – Eu não entendi.

Pedro – Mas eu sim. De tudo o que ficou gravado todos nós somos realmente suspeitos de ter envenenado Evans. Uma situação, no mínimo curiosa eu diria. Um homem envenenado que foi beijado, tragou a fumaça de um charuto, levou champanhe nos olhos e ainda ingeriu um suposto remédio. A coisa toda me parece simples. Como o Paulo bem lembrou. Estamos no Brasil. E nenhum de nós tem moral, na verdade eu diria coragem, de confeccionar um batom envenenado, um charuto ou colocar veneno em um champanhe. A coisa mais fácil era dar uma droga passando por remédio. Isso é muito mais fácil de conseguir.

Allexia – De fato, o senhor Pedro parece ter razão. E como nós aprendemos ao longo da carreira, todo o crime é cometido da forma mais simples. Espantosamente simples.

Todos se voltam para Jorge, que percebe que está sendo acusado por todos.

Jorge (afastando-se dos demais e gesticulando de forma nervosa) – Calma gente. Calma. Não há provas contra mim. Aquilo era remédio para pressão. Nada demais.

Sarah (pulando da poltrona) – Mentiu! Ele mentiu! Você está mentindo. Antes você disse que o remédio era para dor de cabeça, e agora você disse que era para pressão.

Paulo – Caramba! Você matou o Evans!

Pedro – Assassino!

Allexia (levando a mão até sua arma e se aproximando lentamente de Jorge) – É melhor o senhor ficar calmo e explicar direitinho o que aconteceu, senhor Jorge. Por que você matou o meu tio? Por quê?

Mas antes que ela empunhasse a arma, Jorge passa a mão pelas costas e saca de um revólver calibre 38.

Jorge (apontando a arma para todos e falando com frieza) – Muito bem. Agora chega, chega dessa palhaçada. Tudo mundo com a mão na cabeça, vamos. Todo mundo. Você (fala com Allexia) joga sua arma para cá. Devagar hein, devagar. Bando de gente estúpida. Eu não matei aquele idiota. Eu nunca matei ninguém na minha vida. (ele engatilha a arma) Ainda. Mas sempre há uma primeira vez. Sempre há. (ele se abaixa, pega arma de Allexia e a põe na cintura).

Allexia – Desista Jorge. A casa está cercada. Há vários policiais lá fora. Você não tem como escapar.

Jorge (rindo) – Tenho sim. Claro que eu tenho. Eu sei que a biblioteca tem uma saída secreta, não é Juiz Pedro?

Pedro (taciturno) – Eu não sei do que você está falando.

Jorge (aos berros) – Como não? Como não? Eu sei tudo da sua vida seu idiota. Sei de tudo. Não sei quem realmente quem mandou o convite para eu vir até aqui, mas agradeci de joelhos. Finalmente tinha a oportunidade de roubar de você o que você roubou usando toga e o Código Penal embaixo do braço, seu ladrão. E eu preciso desse dinheiro. Preciso muito desse dinheiro. Minha vida depende desse dinheiro.

Paulo – Então era verdade aquele papo de que você devia dinheiro para a máfia russa? E eu pensei que era um boato estúpido.

Jorge – Não Paulo. Não era boato. Eu fui enganado. Fui enganado. Conheci uns traficantes do Rio de Janeiro. Eles me pediram armas. Eu consegui as armas. Da Máfia Russa. Vocês não têm noção, nem você seu Juiz de bosta, o poder que essa gente tem aqui dentro. Consegui um contato, encomendei as armas e fiz a entrega. Mas eles me enganaram. Os trafica lá do Rio me deram calote. Na verdade eu fui usado. Usado por aquele bando de cachorros sem palavras. Só que a máfia não quis saber de nada disso. Ela queria o dinheiro. Nem queria as armas de volta. Queria o dinheiro. E era muito dinheiro. Dinheiro que eu nunca imaginei ver na minha vida. Dinheiro que eu sabia que só uma pessoa poderia me emprestar, ou melhor, me dar. O dinheiro que está com ele. Com o nosso querido Juiz aqui.

Pedro (nervoso) – Eu não sei do que você está falando.

Jorge – Se liga Juiz. As contas. Eu quero o número das contas nos paraísos fiscais da Europa e do Caribe. É só isso que eu quero.

Pedro – Eu não sei do que você está falando. Eu juro que não sei.

Nesse momento o telefone de Pedro toca. Ele não atende. A ligação acaba caindo no sistema viva-voz do aparelho e todos os presentes ouvem o piloto do seu jato particular falando.

Doreto (em off) – Doutor Pedro? Doutor Pedro? Na escuta? Boas notícias. Já temos teto para voar. Destino até as Antilhas Holandesas traçado e autorizado. Aguardo apenas sua chegada, positivo? Por favor, dê um retorno assim que possível! (desliga a seguir)

Jorge (rindo) – Ótimo. Viu investigadora? Agora eu tenho plano de fuga internacional. Vou de jatinho sacar os dólares que este pilantra conseguiu vendendo alvarás e sentenças prá todo mundo. Eu falei só uma parte do que eu sabia no tribunal Juiz. Você pensou que eu não sabia da existência das contas, não é?

Pedro – Seu maldito, desgraçado!

Jorge (apontando a arma diretamente para a cabeça de Pedro) – Se eu apertar esse gatilho eu perco minha liberdade e o dinheiro. Mas você perde a vida. E o dinheiro também, naturalmente... E então, o que vai ser?

Pedro comprime os dedos em sinal de claro nervosismo. Olha com ódio mortal para Jorge que também o fita de forma agressiva. Após alguns segundos de tensão, suspira inconformado.

Jorge (gritando e aproximando a arma da cabeça de) – As contas! Onde estão os números das contas e as senhas?

Pedro (a contragosto) – O livro. O Príncipe, de Maquiavel. Estante de trás, da esquerda para direita.

Jorge (sorrindo) – Eu sabia. Sempre Maquiavel. Sempre Maquiavel.

Sarah – Nossa! Então ele tem mesmo conta no exterior.

Paulo – Mas é claro. Disso todo mundo sabe.

Jorge (voltando-se para Bianca) – Você! Vá até lá e pegue o livro. Vamos! Vamos!

Demonstrando medo, Bianca vai até a estante no local indicado e fica gesticulando nervosa.

Bianca – Olha gente, todos os livros daqui são iguais. Têm até a mesma cor. Só que cada um tem umas palavras diferentes. Eu não sei onde tá esse livro! Eu não sei!

Pedro (sempre falando a contragosto) – É claro que são todos iguais. São edições publicadas em vários países do mundo.

Jorge – E em qual deles estão as contas e as senhas?

Pedro – Na edição em francês.

Bianca – Tá, mas eu não sei falar francês. Nem sei que língua é essa!

Sarah – Ué, queridinha! Não era sua mãe que morava na Praça da Torre Eifel?

Bianca – Cala a boca sua ladra de orfanato.

Pedro - O quinto livro da esquerda para a direita.

Bianca pega o livro.

Jorge – Traga-o para cá.

Ela o entrega.

Jorge - Onde está? Em que página está?

Pedro (com um certo orgulho) – Capitulo VIII, página 71. “É preciso ressaltar que, ao se assenhorar de um Estado, aquele que o conquista deve definir as ofensas a executar e faze-lo de uma só vez, a fim de não ter de as renovar a cada dia. Assim, será capaz de nos homens inspirar confiança, conquistando-lhes o apoio ao conceder-lhe benefícios”. Siga o inicio desta última frase, levante um pouco a lombada do livro e você encontrará um filete de microfilme.

Jorge assim age, vindo a se exaltar ao encontrar o microfilme escondido no livro.

Jorge – Isso me trará muitos benefícios meu caro Juiz. Muitos benefícios. A minha salvação.

Numa ação rápida, Jorge joga o livro em direção ao Juiz, ao tempo em que agarra Bianca pelas costas, apontando-lhe agora a arma para sua cabeça.

Jorge – Muito bem Senhor Juiz. Agora eu tenho as contas, uma refém, e um jatinho a minha espera. Jogue o seu celular para cá. Jogue. Agora!

Sempre a contragosto, Pedro assim procede.

Jorge – Só mais um pedido Excelentíssimo Meretríssimo de uma figa. Onde é a passagem secreta? Onde é?

Pedro – Não existe passagem secreta nessa biblioteca. Não existe.

Paulo – Por favor, Jorge. Não machuque a minha Bibi. Me leve no lugar dela. Solte-a, por favor.

Jorge – Se orienta sua bicha velha! Eu lá vou querer trocar você por essa gostosona aqui? Não tô louco nem troquei de time não! Eu só quero sair daqui com segurança. Onde é a passagem secreta Pedro? Onde é?

Desesperado, Jorge, ainda abraçado a Bianca, vai até a estante e joga alguns livros no chão. Volta para perto da lareira e vira os vasos ao lado dela atrás de alguma coisa.

Porém, num momento de distração ao afastar a arma de Bianca, ela, demonstrando uma aBiancaidade inacreditável, efetua um golpe de judô após acertar um soco certeiro na boca do estômago de Jorge, o jogando no chão, tomando as duas armas e o microfilme. A seguir, demonstrando muita segurança, volta a render todos ali, deixando Jorge caído próximo a Allexia.

Bianca – Para trás! Continuem onde vocês estão. Eu só quero sair daqui. Eu só quero sair daqui!

Pedro – Parabéns! Eu não sabia que você tinha capacidade para fazer isso. Até parece que você sabe lutar judô.

Bianca – Eu não luto mesmo. Mas sei me defender. Sei muito bem me defender. E então? Como eu faço para sair daqui sem ser vista? Eu não posso ser encontrada.

Paulo – Bibi, meu amor, o que você está fazendo?

Bianca (irritada) – Cala a boca sua bicha! Cala a boca! Eu falei que não deveríamos vir para cá. Eu sabia que tinha alguma coisa errada. Eu sabia. Desde que aquele idiota do mordomo entregou o convite para mim eu sabia.

Sarah – Ué? Mas vocês não receberam pelo correio?

Bianca – Não sua anta! Ele entregou. Foi ele. E eu desconfiei que ele sabia quem eu era. O bilhete veio no meu outro nome.

Pedro – Outro nome? Ei Paulo, onde você arranjou essa figurinha ai?

Bianca (sorrindo) – Responda Paulo. Responda para ele onde nos encontramos.

Paulo (a contragosto) – Bem... Eu tive uns probleminhas com a Polícia da Bahia no ano passado... E ai...

Bianca – O irmão de vocês além de gay é pedófilo. Pedófilo tarado.

Sarah – Eu não acredito Paulo! Você?

Bianca – Conta Paulo. Conta doutor Paulo prá eles.

Paulo (olhando com raiva para Bianca) – É! É isso mesmo. Eu fiquei preso uns dias lá em Ilhéus, na Bahia, por causa disso sim. Tinha saído com uns meninos lá e a Polícia me pegou. Foi então que eu conheci essa biscateira. A viúva-negra da Bahia. A assassina de maridos Elba.

Allexia (demonstrando surpresa) – Ei! Você é a Elba, a viúva-negra? Nossa! Há pedidos de prisão contra você no Brasil inteiro. Pelo menos seus últimos três maridos você matou sem dó nem piedade. Segundo consta, com requintes de crueldade.

Bianca – Matei. Matei sim, e daí? Só o dinheiro deles me interessava. Só dinheiro. Eles queriam que eu fosse uma mulherzinha de forno e fogão para eles. Só isso. Mulher só para dar de comer para eles. Em todos os sentidos. Mas aí eu acabava com a festa rapidinho. Matava e dava no pé. O problema é que o dinheiro acabava. Fugir é muito caro. E viver fugindo gasta muito também. E justamente quando eu estava fugindo para os Estados Unidos a Polícia da Bahia me pegou.

Sarah – Então você nunca foi mesmo para os Estados Unidos?

Bianca – Eu sempre sonhei em ir prá lá.

Sarah – Ah... agora entendi. Realmente você não conhece nada de lá.

Bianca (balançando a cabeça) – Eu estava indo prá lá. Aí eu conheci esse traste pederasta aí (aponta para Paulo) no Distrito Policial. Acabamos juntando nosso dinheiro e compramos a nossa fuga com o Delegado. Viu doutor Juiz? Não é só o senhor que vende liberdade não. Como eu precisava me esconder, resolvei acompanhar esse lixo do Paulo para São Paulo. Achei que mudando de nome e vivendo no interior ninguém iria me encontrar. Ia juntar dinheiro novamente e sumir do mapa. Quem sabe até matando o meu quarto marido. Até que um belo dia estou eu lá no comitê e me aparece o imprestável do seu tio (aponta a arma para Allexia) com um convite nas mãos em nome do Paulo e de sua noiva, Elba. Ele sabia quem eu era. Ele sabia de alguma forma. Eu senti que ele sabia. Não sei como. Eu nunca o tinha visto antes. Eu sabia que era arriscado ignorar o que ele pudesse saber sobre o meu passado, por isso eu vim para cá. Disse que não queria, mas vim. Precisava saber do que ele sabia e, se necessário fosse, tirá-lo do meu caminho.

Pedro – Então foi você quem matou o Evans?

Bianca (sorrindo) – Não. Não fui eu. Nem deu tempo para saber do que ele sabia. Foi isso o que eu disse no seu ouvido quando cheguei. Queria conversar a sós com ele. Mas nem deu tempo. Um de vocês deu cabo dele antes.

Mesmo caído, Jorge tenta se levantar desesperadamente e vai para cima de Bianca, que automaticamente faz pontaria em sua cabeça.

Jorge (balbuciando) – As contas. Eu preciso das contas.

Bianca (gritando) – Se afasta! Saia de perto de mim.

Mas antes que ele pudesse fazer alguma coisa, aproveitando-se da sua leve distração, Pedro pega o atiçador de lareira que estava próximo de si e, num arremesso certeiro, o lança em direção ao braço de Bianca, acertando-o em cheio e fazendo com que ela derrubasse a arma.

Imediatamente Allexia se lança sobre ela e, após uma breve luta, consegue desarmá-la por completo, recuperando as duas armas e o microfilme.

Allexia (já de pé, rendendo Bianca) – Ótimo golpe doutor Pedro. Não sabia que tinha um mira tão precisa assim.

Pedro (contrariado) – E se fosse um pouco mais jovem a desarmaria também policial.

Sorrindo, Allexia vai até a porta, abre-a e chama por reforços.

Allexia – Muito bem senhoras e senhores, vocês todos estão presos.

Paulo – Presos?! Mas como, porque... eu fiquei aqui quietinho. Eu não fiz nada.

Allexia – Mas não é o que parece. O senhor, doutor Paulo, está preso por prática de pedofilia em Ilhéus. O senhor mesmo acabou de confessar. O senhor. Jorge por porte ilegal e tráfico de armas. Se contribuir com a Justiça e delatar quem são os contrabandistas para quem o senhor trabalha poderá ter sua pena diminuída. A senhorita. Bianca, ou melhor, Elba, é procurada por pelo menos três homicídios no estado da Bahia. Vai ficar um bom tempo na cadeia. E o senhor, Juiz Pedro, está preso por corrupção ativa, venda de sentenças, evasão de divisas entre outros.

Pedro (falando em tom ameno) – O que é isso Policial? Que provas você tem contra mim? Esse pedaço de filme não vale nada. Eu posso te dar algo mais valioso. Alguns milhares de dólares que podem te fazer esquecer disso tudo rapidinho. Que tal? Você prende eles, essa escória imunda, e ainda sai lucrando. O que acha?

Allexia – E por corrupção contra Policial também.

Sarah – Pedro! Você é um cretino imundo. Imundo!

Os demais policiais entram na biblioteca e vão algemando todos. Apenas Sarah fica à parte.

Bianca – E ela? Somente ela não fez nada? Se todos nós somos culpados por alguma coisa, ela também deve ser.

Sarah – Credo! Sua assassina. Eu sabia desde a primeira vez que te vi que você não prestava. Eu nunca fiz nada de errado na minha vida. Nunca.

Allexia é chamada até a porta. Volta a seguir com um batom nas mãos.

Allexia – Senhoras Sarah? Reconhece isto?

Sarah (eufórica) – Claro! É o meu batom. É o batom que eu passei quando cheguei aqui. Foi com ele que eu beijei Evans. Foi com ele. Podem examinar. Não tem nada de errado nele. Não tem nenhum veneno nele.

Os acusados ficam se entreolhando.

Pedro – Mas então espere. Afinal de contas, quem matou o Evans então?

Todos fazem silêncio, pensando sobre a pergunta de Pedro.

Até que o telão se liga automaticamente. Uma imagem desfocada à frente de um fundo azul vai surgindo vagarosamente.

Allexia (demonstrado surpresa) – Quem ligou o telão novamente?

Gradualmente, uma imagem vai surgindo no telão, levanto todos ao desespero e a comoção.

Com um forte luz branca a iluminá-lo, surge Evans no telão. Sentando em um banco alvo, ele tem a fisionomia tranqüila e resignada. Quando fala, sua voz faz eco.

Evans – Sarah! Sarah! Você ainda está ai Sarah?

Todos na sala, inclusive Allexia se benzem e maldizem a aparição do espírito de Evans no telão.

Pedro – Eu sabia que esse cara era mancomunado com o capeta! Eu sabia!

Bianca – Cruz credo! Me levem para qualquer lugar mas me tirem daqui! Me tirem daqui!

Paulo (desesperado) – Esse cara morreu! Esse cara morreu! Ele não pode estar aqui. Ele morreu.

Sarah (assustada) – O que é isso? O que ele quer comigo? O que ele quer comigo?

Como se estivesse olhando para Sarah, Evans se dirige e passa a conversar com ela.

Evans – Sarah! Sarah! Vamos. É tempo de falar a verdade. Chega de mentiras. Chega de mentiras e segredos.

Sarah (assustada) – O que ele está dizendo? O que ele está dizendo? O que está acontecendo aqui?

Bianca (rindo) – Ele veio te buscar sua velha assassina. Foi você! Foi você quem matou ele. Agora ele veio te buscar! Veio puxar o seu pé. Vocês vão arder juntos no inferno. Foi você! Foi você quem matou ele.

Sarah – Não! Não fui eu! Eu não matei ninguém. Eu juro. Eu juro por Deus.

Allexia (manipulando o controle remoto demonstrando nervosismo) – Eu... Eu não entendo. O controle não funciona. Quem ligou o telão? Quem ligou o telão?

Pedro (em tom fatalista) – Seu tio voltou Policial. Veio acusar a verdadeira assassina. A verdadeira culpada de tudo.

Evans (com a mesma voz ecoando profundamente) – Sarah! Oh Sarah! De onde estou agora sei que não adianta mais escondermos nossas ações reprováveis, nem mergulhar no nosso mais desvairado orgulho para fugir das nossas vaidades e temores terrenos. Ouça-me Sarah! Ouça-me! Ainda há tempo. Ainda há tempo de você se redimir. Peça perdão. Peça perdão pelo o que você fez. Arrependa-se do que você fez e serás perdoadas. Deus perdoa aos puros e sinceros de coração, que mesmo errando tiveram a grandeza e a sabedoria de arrepender-se e pedir perdão.

Sarah (atônita) – Mas eu não fiz nada. Eu não fiz nada. Isso não pode estar acontecendo! Eu não fiz nada. O que... O que você quer de mim?

Paulo – Por Cristo, paz e caridade! Ele veio assombrar você Sarah. Ele quer que você o perdoe.

Allexia – Isso, isso não pode ser. Eu não posso acreditar no que estou vendo. Será verdade? Será verdade mesmo? O meu tio voltou?

Pedro – Ele veio te buscar minha irmã. O que você fez? O que você fez?

Sarah (em prantos e gritando) – Eu não fiz nada! Eu não fiz nada! Eu sou inocente. Eu sou inocente, acreditem. Acreditem! (ela se volta para o telão e olha para Evans, que fica a esperar ela falar). Eu não fiz nada para você Evans. Você sabe. Você sabe que não fui eu quem o matei! Você sabe muito bem. E de onde você está sei que não pode mentir. Não pode mentir!

Sarah senta-se em uma das poltronas e desata a chorar desesperadamente, enquanto todos fazem um silêncio sepulcral no recinto.

Demonstrando dó, Allexia se aproxima e, gentilmente, afaga os cabelos de Sarah.

Evans – Peça Perdão minha querida. Arrependa-se sinceramente dos seus pecados. Arrependa-se das suas noites de luxurias onde, em uma delas, eu acabei sendo vítima do seu desvario carnal e do seu furor uterino. Faça como eu. Arrependa-se.

Todos se voltam para Sarah, que pára de chorar e fica a olhar para o chão, visivelmente atordoada.

Evans – Eu não posso mais pedir perdão Sarah. Não estou mais entre vocês. Você sabe disso. Faça isso por mim então. Peça perdão.

Novamente o silêncio se instala na sala.

Pedro – Mas afinal de contas Sarah, para quem ele quer que você peça perdão?

Bianca – Ora, para ele é claro! Ela o matou! Foi ela quem o matou!

Pedro – Não! Não é isso. É outra coisa. É alguma outra coisa. Algo que somente a Sarah sabe. Somente eles sabiam.

Paulo – Escuta Sarah! Fala logo que aconteceu! Fala logo o que ele quer.

Pedro – Sarah, o que aconteceu entre vocês? O que aconteceu?

Sarah, ainda olhando para o chão, levanta-se da poltrona e, como se estivesse revivendo algum momento de sua vida, anda pela sala gesticulando enquanto fala.

Sarah (com voz serena) – Era um reveillon. Um reveillon maravilhoso. Muito branco, muita alegria, muita luz. Muita alegria. Muito amor. Amor. Eu estava radiante em um lindo vestido de cetim branco feito à mão especialmente para mim. Eu reluzia naquele vestido junto com as jóias que haviam sido da mamãe. As pulseiras de brilhantes. Os anéis de diamantes. O colar cravejado de esmeraldas e água-marinha. A tiara banhada a ouro resplandecia sobre os meus cabelos dourados. Meus brincos de rubi. Meu perfume Channel importado. Eu era todo eu. Eu era a maravilha em pessoa. A mais bonita. A mais radiante. A “ Miss Feliz Ano Novo”. Eu estava assim. Eu estava assim. Tinha luz. Tinha festa. Tinha música. Tinha gente bonita. Tinha bebida. Muita bebida. Champanhe, vodca, martini, uísque, vinho. Muito vinho. Muita alegria. Aquela festa estava maravilhosa. Nem parecia que tinha acontecido aqui. Era só alegria. Papai alegre. Bebida a vontade. Lembro. Sim. Lembro-me muito bem do Pedro sorrindo. O meu irmão Pedro sorria. Papai sorria. O Paulo... Não me lembro se o Paulo estava. Todos felizes, todos alegres. E bebendo, bebendo e se divertindo. Bebendo e se divertindo.

Sarah faz uma pausa. Abaixa a cabeça por alguns instantes. Volta a ficar ereta. Respira fundo. Fecha os olhos. Abre-os e olha para frente com certa dificuldade, demonstrando nervosismo enquanto esfrega as mãos.

Sarah – E lá estava eu. Tão alegre, tão feliz, tão radiante... tão... tão bêbada! Bêbada! Um lixo de bêbada. Completamente bêbada. Um trapo. Rindo alto, falando besteira e acabando com a festa. Com aquela festa maravilhosa. Eu não me contive. Excedi. Sim Bebi além da conta, fui além dos meus limites e acabei perdendo não só a minha consciência. Não sou a minha elegância e educação. Mas o meu amor próprio. A minha própria auto-estima. Comecei a flertar com vários homens. Beijos. Insinuações. Olhares. Todos me olhavam como se me devorassem. E eu os instigava mais. Abaixava partes do vestido. Papai fazia de conta que não via. Me chamava de louca. É louca. A minha filha é louca. Eu aproveitava. Passava a língua por entre os dentes. Instigava os casados e os solteiros. Interessava-os. Mas logo depois os dispensava. Era esse o meu jogo durante aquela noite. Não queria ninguém. Eu já estava sozinha. Eu já estava sozinha naquela época e não queria ninguém. Trinta e cinco anos, três casamentos frustrados, namoros por interesse e sexo por casualidade. Eu queria curtir a vida. Eu sentia que tinha pouco tempo de vida. Eu precisava de mais tempo de vida. E queria aproveitá-la assim. Bebendo, fumando, fazendo sexo, dando para quem eu quisesse, a hora que eu quisesse e como eu quisesse. Mas naquela festa, naquela maravilhosa festa, não foi assim que aconteceu. Algumas cenas me fogem. Foi tudo tão traumático. Lembro de ter levado um tapa na cara. Um homem alto, louro, de olhos claros, tentava abusar de mim na adega lá embaixo. Meu vestido estava rasgado. Eu não queria estragar aquele vestido tão bonito. Eu não queria fazer sexo com ele. Mas eu estava bêbada. Completamente bêbada. Tentei me levantar e tomei outro tapa na cara. Senti dor. Muita dor. Minha face parecia queimar. Lembro que o meu agressor babava. Na verdade urrava sobre mim. Arrancou minha peça íntima com os dentes. Não lembro o que ele dizia. Mas me esbofeteava. Sentia dor. Muita dor na face. Até que de repente ele caiu. Alguém o havia acertado por trás. Acho que na cabeça, porque ele caiu e ficou no chão. Não senti mais dor na face. Abri os olhos e vi o meu salvador tentando me levantar do chão. Não sei o que deu em mim, mas achei que aquele era o meu homem. O meu herói. Era com que ele que eu queria sentir dor. Não na face, mas em outro lugar. Ele tentava me levantar, mas eu o puxava contra mim. Abraçava-o. Cheirava-o. Tinha cheiro de loção após barba. Era isso o que queria. Era disso que eu precisava. Pedi para que ele me amasse. Pedi para que ele me amasse. Eu disse que o amava. Eu disse que o amava.

Novo silêncio se faz na sala. Sarah volta-se para o telão e olha chorando para a figura de Evans no telão.

Evans (notoriamente emocionado) – E eu a amava Sarah. Sinceramente a amava.

Sarah (em meio a lágrimas) – Mas eu não te amava Evans. Me perdoe. Mas eu não te amava. Nunca quis você de fato. Foi... Foi tudo uma casualidade. Uma loucura do momento. Não queria te magoar. Juro. Juro que eu não queria te magoar nem ferir seus sentimentos. Sei que depois nunca mais nos vimos. Você vinha me procurar. Eu te afastava de qualquer pretensão. Oh, Evans. Me desculpe. Me perdoe. Me perdoe por favor.

Novo silêncio se faz na sala. Todos ficam em silêncio olhando ora para Sarah ora para Evans cabisbaixo no telão. Até que ele novamente se faz ouvir em um tom de voz alto, como um trovão.

Evans – Não Sarah! Não é a mim que você deve pedir perdão. Apesar da sua sinceridade e do seu arrependimento, não sou eu quem devo receber seu perdão. Eu também errei a partir do momento que desisti de lutar por você, de querer você. Eu também errei. Você deve pedir perdão para quem verdadeiramente sofreu pelo nosso amor equivocado, pelo nosso desejo carnal, e que pela vaidade e orgulho dos homens acabou crescendo na ignorância e fora de um verdadeiro seio familiar. Sem pai. E sem mãe. Sem eu e sem você Sarah. A nossa filha. A nossa filha de quem eu escondi por trinta anos de você. A filha que eu tratei como reles parente e não sangue do meu sangue. A minha e a sua filha. Allexia.

A revelação deixa todos boquiabertos. Allexia olha para Evans e Sarah como que perdida, sem acreditar no que esta ouvindo. Sarah fica em pé, inerte, com as mãos na boca não acreditando no que esta ouvindo.

Evans – Sua filha! Nossa filha Sarah! Nossa filha!

Allexia (reticente, olhando com carinho para Sarah) – Mãe? Você é a minha mãe? Nossa! Eu...Nunca conheci... Nunca pensei em conhecer a minha... A minha mãe, nem o meu pai. Todos me diziam que eles morreram logo depois que eu nasci. Você, você é a minha mãe?

Evans – Peça perdão a ela Sarah. Não a mim, já que você nada me fez a não ser deixar um coração partido por uma desilusão amorosa e irreversivelmente dolorido por nunca ter tido coragem para reconhecer a minha própria filha. Mas eu não conseguia dizer a ela que sua mãe não a queria Que sua mãe ainda estava viva, viva, mas não a queria.

Sarah fica a olhar para Allexia chorando copiosamente. Todos olham aturdidos a cena. Allexia então se aproxima de Sarah querendo tocá-la, quando ela então dá um passo para trás e grita a plenos pulmões.

Sarah – Você não é a minha filha! Você não é a minha filha. Você não pode ser minha filha. Minha filha morreu. Ela morreu. Ela está morta. Ela está morta.

Pedro – Mas eu nunca soube que você teve um filho alguma vez. O que você fez Sarah?

Sarah – Eu não tenho filha. Eu sei. Ela está morta porque eu a matei. Eu matei a minha filha que tive com aquele homem. Eu matei a minha filha.

Novamente o silêncio paira na sala. Aos poucos, a imagem de Evans vai desaparecendo no telão, assim como apareceu. Transtornada, entre choro e soluços, Sarah explica tudo.

Sarah – Depois daquela noite com Evans eu fiquei grávida. Depois daquela maldita noite concebemos um bebê. Eu fiquei esperando um filho de Evans. Um filho do mordomo da casa dos meus pais. Nossa! Isso não podia acontecer. Não podia ter acontecido. Mancharia minha reputação de socialite para sempre. Aquela gravidez não podia ter ocorrido. Procurei por médicos especialistas, corri o mundo atrás de alguém que pudesse tirar aquela criança da minha barriga. Tirar da minha barriga aquele erro causado por bebida em excesso. Mas eu não podia. Eu não podia fazer um aborto. Eu tinha problemas. Problemas no útero. Deveria esperar. Fui orientada pelos médicos a esperar os noves meses. Se acaso eu tentasse um aborto talvez eu e o bebê morreríamos. Era arriscado demais. Resolvi então viajar. Para a minha família eu disse que iria fazer um curso fora do país. Internei-me em uma clínica de repouso nos Estados Unidos. Fiquei lá os noves meses. Nove meses maldizendo minha vida. Nove meses lamentando o meu infortúnio. Nove meses maldizendo aquele ser que crescia dentro de mim e poderia me tirar o glamour da vida social. Ficaria sendo conhecida como a mulher do mordomo. Minha filha seria chamada de bastarda. Não! Eu não queria isso. Não podia querer isso. Foi por isso. Foi por isso que três dias depois que ela nasceu eu a matei. Sim. Eu a matei. A joguei no fundo de um poço abandonado lá na clínica. Ela não sobreviveu. Eu sei que ela morreu. Eu sei que ela morreu. Por isso você não é a minha filha. A minha filha morreu. A minha filha eu matei. Eu matei.

Todos continuam calados. Mostrando frieza e absoluto controle, Allexia nada fala, olhando para Sarah sem demonstrar nenhuma emoção.

Paulo – Mas então... Você é a minha sobrinha mesmo? Você é ou não é a filha da Sarah? Se for, não vai querer prender o seu titio, não é?

Allexia (com a voz embargada) – Vocês não ouviram o que ela disse? Vocês não ouviram? Ela matou a própria filha. Ela matou a própria filha...

Bianca – Mas a alma, quer dizer, o Evans disse que você era filha deles! Como pode? Como pode tudo isso?

Sem responder, Allexia vira-se ordena para os demais policiais.

Allexia – Vamos. Tirem todos daqui. Levem todos para o Distrito. Estão todos presos. Inclusive essa assassina confessa aqui. (aponta para Sarah que, transtornada, não oferece mais resistência a não ser chorar).

Paulo – Escuta, ô irmazinha! Você teve ou não teve uma filha? O que aconteceu? O que aconteceu?

Jorge – Era isso que o espírito do Evans queria. A confissão dela. A confissão pela morte da filha.

Bianca – Mas ele falou que a Allexia era filha dele! É ou não é?

Pedro – Mas, no final das contas, quem matou o Evans afinal? Hei! Policial! Deixe-me falar com ela. Quem matou o Evans afinal? Quem matou ele?

Os policiais vão tirando as pessoas da biblioteca, restando apenas Allexia. Demonstrando um certo alívio, ela vai até o local onde está a arandela do lado direito da estante e, com a ajuda de uma escada, pega uma outra câmera de vídeo que estava aposta lá. Desce e fica a analisar o aparelho.

Allexia – Um traficante de armas, um pedófilo, um corrupto e duas assassinas. Tudo aqui. Tudo aqui dentro, gravado e confessado espontaneamente. Impressionante.

Eis então que ela é surpreendida por três batidas na porta e a entrada triunfante de Evans no recinto.

Evans – Com licença senhorita. Investigadora. Já acabou tudo?

Allexia (sorrindo de satisfação) – Sim, Evans. Já acabou. Graças a sua ajuda conseguimos tirar uma boa parte da podridão da sociedade das ruas.

Evans (com toda a sua fleuma habitual) – Fico humildemente contente em poder ter sido útil nesta atuação policial. Como cidadão honrado que sou, sei que cumpri com as minhas obrigações.

Allexia –Realmente você surpreendeu Evans. Surpreendeu a todos nós. Confesso que até pensei que o nosso plano não iria dar certo. Você não ficou com medo?

Evans – Medo mesmo não tive. Fiquei um tanto apreensivo quando o senhor Paulo quebrou a garrafa e tentou me acertar. Mas felizmente ele foi contido pelos demais e não me acertou.

Allexia – Além disso, você demonstrou ser um ator de primeira.

Evans – Obrigado. De fato senhorita eu cheguei a fazer cursos de interpretação na escola.

Allexia – Você caído no chão foi espetacular. Parecia estar morto mesmo.

Evans – Mas foi muito difícil ficar com aquela placa de aço acolchoada no peito e depois prender a respiração. Mas era necessário. Como a senhorita previu, eles foram checar se eu estava morto ouvindo o meu coração.

Allexia – Sinceramente Evans, eu tenho que lhe tirar o chapéu. Seu plano foi fantástico. Fantástico.

Evans – Obrigado mais uma vez senhorita. Creio que o sucesso não deva ser creditado apenas para mim.. O plano, ou melhor, nosso plano, foi um sucesso pelo fato de não ter ocorrido acasos. Assim como tudo na vida, as situações se desenrolaram da forma prevista e como deveriam acontecer. Como eu previ, Sarah iria remover o batom após me cumprimentar. Ela sempre fez isso. Já o doutor Pedro não fuma, mas em situações onde ele precisa demonstrar sobriedade ou altivez, gosta de manipular um charuto. Na verdade ele é avesso a qualquer tipo de cigarro. Com o senhor Paulo sabia que depreciando o seu gosto lhe provocaria ódio. Eles não disseram, mas eu que sugeri que ele trouxesse uma de suas melhores champanhes. E de fato a champanhe era maravilhosa. Eu é que a desmereci propositadamente. Já com a senhorita. Bianca não teve outro jeito a não ser me mostrar a ela. Não a conhecia. Foi um amigo meu que trabalhou para um dos seus maridos, que me passou algumas dicas sobre ela. Como ela era a única pessoa que eu não conhecia, preferi, como se diz na gíria, cutucá-la com vara curta. E o Jorge... pobre Jorge. Suas aspirinas finalmente serviram para alguma coisa.

Allexia – Todos acabaram se sentindo pressionados e acabaram confessando os seus crimes. Você sabia também que o Jorge estava armado?

Evans – Claro que sim senhorita. Ele sempre andou armado quando trabalhava como secretário do Senhor Pedro. Sabia de antemão. Por isso lhe deixei avisada. Por isso deu tudo certo.

Allexia – Sim. Realmente deu. As câmeras funcionaram divinamente. Tudo foi registrado e gravado.

Evans – É uma maravilha essa tecnologia sem fio. Capta-se a imagem em uma sala e transfere-se para outra sem nenhuma interferência. Graça a Deus a queda de energia não queimou os equipamentos.

Allexia – Além disso, você ficou ótimo no telão. Sua voz modulada ficou sinceramente sinistra.

Evans – De fato, a equipe técnica de vocês é maravilhosa.

Allexia – E tudo saiu como prevemos realmente. Eles, ao invés de tentar entender o que estava acontecendo passaram apenas a repudiar e a crer que sua imagem no telão era algo tão somente sobrenatural, do outro mundo, sei lá. Ninguém parou para pensar sobre o que estava acontecendo. Para pensar ou sequer imaginar se podia ser verdade o que estavam vendo. Já acreditaram que era o seu espírito e pronto. É como está escrito: “O sobrenatural se esvai à luz da ciência, da filosofia e do raciocínio, assim como os deuses do paganismo desapareceram à luz do Cristianismo”. É necessário compreender os fatos, e não simplesmente taxa-los de sobrenatural.

Nesse instante Evans abaixa a cabeça e solta um longo suspiro.

Evans – Obrigado senhorita. Allexia. Muito obrigado por me ajudar a trazer um pouco de Justiça na minha tão injusta vida.

Allexia – Você não tem nada para agradecer Evans. Imagino o quanto foi doloroso para você agüentar todos esses anos sabendo que sua filha havia sido morta pela própria mãe.

Evans (com a voz embargada) – Eu tentei evitar isso. Juro que tentei. Tentei evitar que ela tomasse essa atitude extrema. Cheguei até mesmo a viajar para os Estados Unidos atrás dela. Mas cheguei tarde. Ela já havia obtido alta e, como subornou os médicos e enfermeiros, não houve registro de que ela estava grávida quando deu entrada naquela clínica de repouso. Alguns jornais do condado local chegaram a fazer reportagens sobre o corpo de um recém-nascido encontrado morto dentro de um poço abandonado. Mas isso foi meses depois. Tanto eu como ela já estávamos no Brasil. De fato foi difícil, muito difícil conviver com essa dor na alma Muito difícil.

Allexia (comovida) – Eu sinto muito Evans. Sinto muito.

Evans – Na verdade sinto um pouco de dó dela. Sinto dó da Sarah. Acho que é mais um misto de dó e raiva. Na verdade, ela é como as outras pessoas. Pensa como elas. Pensa como muitas pessoas pensam. Que um ato individual, por menor ou maior que seja, lhe diz apenas respeito e não deve obrigações ou explicações para terceiros. Trabalhando praticamente minha vida toda como mordomo, servindo a quem tem para poder me manter, percebi muito de perto essa diferença. Não uma diferença econômica ou social, de nível de estudo ou de posição pessoal. Mas sim uma indiferença de um para com os outros no que diz respeito à convivência. De que a vida de um é independente do outro. As pessoas ignoram ou até fingem não perceber que suas decisões individuais acarretam conseqüências sociais que são recebidas e sentidas por outras pessoas em vários sentidos ou situações. A verdade é que não temos a noção de que nossos atos, os mais ínfimos ou inocentes que possam parecer, podem acabar gerando distúrbios enormes e terríveis na vida de outras pessoas. Você pode ver tudo isso na atitude isolada da Sarah, que achando que tomou uma decisão acertada sozinha acabou gerando não só uma morte, mas uma dor que sobrecarregou meus ombros por mais de trinta anos. Como os esquemas ilícitos do Juiz Pedro. Com os interesses descomunais de Jorge. Com o desejo insensível de Elba ou com a tara do senhor Paulo, que quantas infâncias e adolescências traumatizou para satisfazer seus desejos carnais. A individualidade é um exercício constante de estar bem, ficar bem e querer bem a todos os outros. Não basta querer uma coisa ou a outra. Pensar naquele que está próximo a mim ou distante de mim é extremamente necessário.

Ele solta mais uma vez um longo suspiro e, pela primeira vez, arqueja os ombros dando sinal de cansaço.

Allexia – E agora? O que você vai fazer?

Evans – Eu já estou inscrito no programa de apoio à testemunha da polícia. Vou me mudar para outro Estado. Não sei se vou continuar trabalhando como mordomo. Creio que se tornou uma profissão muito perigosa. Pelos menos para mim.

Allexia (sorrindo) – Sem dúvida, muito perigosa. Muito perigosa.

Evans – Vou arrumar minhas coisas e deixar essa casa, minhas dores, angústias, segredos e tristezas para trás. Deixar tudo enterrado aqui. Espero não mais ver nenhum daqueles homens e mulheres novamente.

Allexia – Não se preocupe. Com certeza eles não o virão mais. Com certeza.

Eles voltam a trocar mais um abraço afetuoso. Evans acompanha Allexia até a porta e a abre para a passagem da Policial. A seguir, fecha-a e olha para a sala vazia, perdido em seus pensamentos. Ao olhar para o telão, vai até ele e torna a pôr o quadro na sua posição normal, com a figura de Maquiavel pintada para frente.

Evans (olhando para o quadro) – E os fins justificam os meios...

Balança a cabeça positivamente. Caminha até a porta, faz uma última flexão para o interior da sala e sai.



FIM