Marcelo Almeida do Nascimento

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Neste blog você encontrará os textos originais dos meus projetos literários, peças teatrais, roteiros e apresentação de jogos de tabuleiro. osbatutas@yahoo.com.br

Escrever para quê?

O título acima faz parte de uma discussão que termina na seguinte conclusão: Ler para quê? Há muitos anos tenho desenvolvido minha teoria a respeito dos hábitos da leitura e do gosto pela literatura. Por isso estou voltando a usar este blog para discutir um pouquinho sobre a falta de leitura e o comprometimento disso na escrita. Afinal, para que escrever se não há ninguém para ler.



Livro de Contos - O Clube das Carências Afetivas

A carência é um mal social. Instituida após a criação de Eva, é sinal de falta de alguma coisa. Seja tempo, dinheiro, vitamina, sexo, idéias, tudo aquilo que nos faz falta nos deixa... carentes! Agora, imagine-se carente de afeto. Você vai dizer que o mundo é assim, que mais da metade da população mundial - incluindo-se aí a torcida do Corinthians e as que torcem contra ele juntas - é carente, e que isso já foi contado, recontado, tratado em verso e prosa por outros escritores, músicos, artistas e visionários bem mais carentes do que eu. Então, conheça as pessoas desse clube. O projeto conta com seis histórias e todas elas acompanham um aúdio, uma música especificamente criada para aquele momento, para aquela carência, para aquela dor. Postei por enquanto apenas dois. Curtam... chorem... ou riam!
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para ouvir a música enquanto lê o texto acesse o link
http://www.esnips.com/doc/6e77bdda-891e-4221-85ea-52546a779c21/Trilha-O-Cheiro


I - O CHEIRO


" O perfume do escroto é indescritivelmente maravilhoso”


Sempre fui condenada pelo o que faço. Nenhum ser, homem ou mulher, amigo ou inimigo, ninguém, jamais, concordou com essa minha idéia. Com essa minha necessidade. Sofro de ciúmes sim. Fazer o quê? Isso é sinal de que tenho amor. De que sinto amor. De que tenho muito amor para dar. Mas quero exclusividade. Não me venha dizer que amar é divino, que devemos entender o homem amado quando ele sai com outra, essas baboseiras canônicas de lavadeiras do século passado, que enquanto esquentavam a barriga no fogão e a esfriavam no tanque, fingiam não saber que os maridos saiam para gozar a vida dentro e fora dos úteros disponíveis e assanhados pelo mundo.

Sou uma mulher romântica. Apaixonada pela vida. Apaixonada pela beleza. E por mim mesma. Mas também sou carente. Necessitada de carinho. Carinho sincero, honesto e fiel. Não existe um amor verdadeiro sem essas características: sincero, honesto e fiel. Eu sou assim. Por que o homem que eu amo também não pode ser?

Por que essa sociedade hipócrita e machista julga os homens pela quantidade de sexo que fazem? Por que existem essas raparigas, crias de casa de viração, que conspurcam nossos homens para mero deleite pessoal ou, na maioria das vezes, para ganhar alguns trocados e fazer um coração infeliz? Por que os homens não seguem o que está escrito no quarto mandamento de Deus?

Romântica sim. Apaixonada sim. Ciumenta sim. Caretona também. Mas idiota nunca. Jamais. Esta é uma qualidade que prezo em mim. Não sou boba. Nunca serei boba. De homem algum. De homem nenhum. Sou independente, bonita, gostosa e tesuda o suficiente para ter os homens que eu quiser. Por isso, não admito que venham me trocar por uma rapidinha com a secretária, com uma trepadinha na boate ou um boquete num driving com uma prostituta. Quero e exijo exclusividade. Dedicação total e irrestrita.

E esse é o meu problema.

Não sou tão ciumenta. Uma doente terrível, capaz de matar por ciúme. Eu não sou assim.

Juro.

Podem perguntar para os meus quatro últimos namorados e três maridos. O Carlos, o Roberto, o Flávio, o Paulo, o Elias, o Eduardo, o João Pedro... perguntem a eles se eu era ciumenta ao extremo.

Não. Nunca fui.

Se eles quisessem ir assistir ao maldito jogo de futebol na casa do amigo eu deixava; se eles quisessem esticar o happy hour eu deixava; se eles quisessem ir pescar eu deixava. Era tudo liberado.

Eu não sou como essas mulheres boçais, recalcadas e neurastênicas, que ficam ligando de cinco em cinco minutos para saber onde o marido está, com quem está, que barulho era aquele ao fundo da ligação, ou o porque do silêncio.

Eu não.

Sempre fui liberal. Apaixonada. Ciumenta. Caretona. Mas nunca idiota.

E sabem por quê?

Porque eu cheiro!

Eu cheiro!

A arma infalível contra a traição.

Cheirar. Isso mesmo!

O cheiro do escroto e do pênis do seu homem.

O cheiro do sexo do seu homem.

Era isso o que eu fazia. Com o Marco Antonio não seria diferente. Não sei porquê ele e toda as feministas de plantão rotulam isso como uma coisa trágica, um ato insano, um destempero psicológico da minha parte.

Há mulheres que quando encontram o marido ou o namorado lhe cheiram o pescoço para sentirem algum perfume de puta na sua pele.

Outras vasculham a roupa atrás de marcas de batom; outras olham o lenço de pano para ver se não há marcas de batom; outras vasculham o carro para ver se não há marcas de batom; outras, mais insanas ainda, ligam para a operadora dos cartões de crédito para saber se houve alguma operação minutos antes dele chegar, com ou sem marca de batom.

Eu sou tão diferente...

Eu apenas cheiro o sexo do meu homem para saber se ele se lavou antes de chegar em casa após um dia de trabalho! Só isso!

Eu cheiro. Sempre cheirei. Com os outros, com Marco Antonio. É isso o que eu sempre fiz.

Uma coisa natural. Trivial.Como quando ele chegava na minha casa:

Oi meu amor, tubo bem?

Tudo. Como foi seu dia?

(dou-lhe um selinho na boca)

Aquela aporrinhação de sempre. Meu chefe querendo comer meu fígado, o Moacir querendo puxar meu tapete.

(tiro seu paletó)

O Moacir? Aquele que trabalha no setor de fraude e não foi promovido?

É. Esse desgraçado mesmo.

(Peço para ele se sentar. Desabotoou o seu cinto, abro sua calça, desço o seu zíper)

Abra o olho querido! Esses executivos estressados que não conseguem promoção ficam dispostos a derrubar qualquer um depois.

Pego com toda a delicadeza seu membro. Tiro-o da cueca. Cheiro tudo. Ponho a cara. Enfio meu nariz entre suas bolas e sua virilha. Sinto o leve odor de urina emanando do seu prepúcio, seus pêlos pubianos roçando minhas narinas, aquele cheiro ocre de suor misturado com o tecido da cueca, o escroto enrugado alisando minhas bochechas... divino!

Sinto o seu cheiro. Aquele cheiro fantástico. O perfume do escroto é indescritivelmente maravilhoso. Sei quando ele está puro, imaculado, aguardando apenas o sexo da pessoa que o ama. Apenas o toque de quem lhe quer e deseja verdadeiramente.

Não pode estar lavado. Nunca! Um sexo masculino cheirando a sabonete de lavanda de motel é uma prova insofismável de que houve traição. Se estiver ensebado, sujo do visgo de alguma vagina rampeira, da saliva de uma boca mundana ou do lubrificante de uma camisinha com aroma de morango, não restam dúvidas: Houve traição. Fui enganada. E isso eu não perdôo.

E eu não sou idiota. Sou romântica, ciumenta, apaixonada, caretona. Idiota não.

E a única certeza que eu tenho de não estar sendo traída é cheirando o sexo dos meus namorados. Dos meus maridos. Do meu último homem. Do Marco Antonio.

Mas ele era como os outros. Como todos os outros. Como vocês. Como vocês que não me aceitam e não toleram essa minha necessidade irrefreável de ser feliz. Marco Antonio acabou abandonando-me a sorte. À sorte da minha carência.

Da última vez em que estava externando minha necessidade, ele afastou minha cabeça delicadamente. Olhou-me nos olhos. Eu sorri. Seu semblante era duro. Fechado. Apertei o seu sexo. Fechei meus olhos. Mordisquei o meu lábio inferior. Demonstrei que o estava querendo. Ele apenas disse: Você é doente. Respondi. Eu te amo. Ele apenas disse: Você nunca vai parar com isso. Isso é doença. Doença. Respondi. Eu te amo. Ele apenas disse. Eu não agüento mais isso. Eu não sou obrigado a agüentar isso. Sempre é assim. Todos os dias são assim. Eu apenas disse. Eu te amo. Ele apenas se levantou do sofá, vestiu-se novamente, pegou sua pasta e apenas disse: Adeus. Procure um médico. Se cuide. Eu não quero mais você. Respondi. Eu te amo.

Ele saiu. Sai atrás dele. Na porta pensei em lhe dizer que eu iria procurar um médico sim, que aquilo não iria se repetir novamente, que eu sei que estava errada, a culpa era minha, o considerava fiel, ele era o amor da minha vida... Eu te amo. Só conseguia pensar em dizer isso parada na porta enquanto ele entrava no elevador.

Confesso que tentei sair correndo em seu encalço. Impedi-lo de sair assim da minha vida.

Só então me dei conta que era a quarta vez que eu estava indo atrás dele para pedir desculpas, dizer que o amava e que iria procurar tratamento para essa minha necessidade compulsiva de cheirar o seu sexo. O sexo do meu amado.

Para fazê-lo entender que eu sou normal. Romântica, ciumenta, apaixonada.

O perfume do escroto é indescritivelmente maravilhoso...

Para fazê-lo entender que eu cheiro por amor. Apenas por amor.

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para ouvir a música enquanto lê o texto acesse o link
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II - A DOR


“O toque mágico daquelas mãos suaves parecia curar a fratura do meu ombro.”


Antes de chegar até aqui conversei com várias pessoas. Fui a vários médicos, especialistas, pessoas com renome e prestigio. Procurei ajuda de todo o tipo de gente que se diz profissional no que faz. Psicólogo, padre, psiquiatra, pai de santo, policial. Um mundo de gente. Um mundo de conclusões.

Sempre indiretas, inexatas e equivocadas.

Foi só no dicionário que eu encontrei a definição do que eu sentia. Leiam. Está aqui:

DICIONÁRIO AURÉLIO. Louco (adj) 1.Que perdeu a razão, doido, maluco. 2. Contrário à razão, insensato. 3. Dominado por paixão intensa, apaixonado 4. Esquisito, excêntrico. 5. Imprudente.

Bendito seja o terceiro verbete! Um alívio aos meus ouvidos e ao meu coração. Lá está escrito. Afirmado. Eu não sou louco como a maioria de vocês acham ou poderão achar. Eu não dou doido, insensato, imprudente.

Eu sou um homem apaixonado. Dominado por uma paixão intensa. Um enamorado. O último romântico... que mede as paixões, o amor, o mais sublime amor, não pelas passagens das primaveras, nem pelos passeios ao luar em noites de verão, tampouco pelos dias, meses ou anos... mas sim pelos ossos quebrados. Pelos meus ossos quebrados.

Não. Por favor, não riam. Não me caçoem. Não me causem mais tristeza e depressão além do que já estou sentido. A dor dessa solidão terrível. Esta dor mais pungente e dolorosa do que a fratura de um fêmur ou o deslocamento de uma clavícula.

A dor da solidão. A dor de não ter a pessoa amada ao seu lado.

Eu não sei, e até hoje não me explicaram direito, de onde vem essa minha necessidade compulsiva em sofrer para sentir amor. Pode parecer antagônico tal coisa, mas essa é a verdade. Eu amo apenas quando estou sentindo dor.

A dor faz com que o meu coração desabroche. Como um rasgo na pele. No ferimento, o sangue surge, escorre. A dor faz com que eu me sinta terno, amoroso, seguro. Sinto-me seguro quando estou sentindo dor. Sinto que estou seguro.

Talvez fosse porque assim começaram os meus verdadeiros relacionamentos amorosos. Dos outros nem considero. Acho que nunca tive mesmo nenhum relacionamento amoroso antes de descobri-lo pela dor. Na verdade, o meu primeiro relacionamento amoroso durou exatamente a calcificação por completo da minha clavícula direita e a mandíbula.

Anete era o seu nome. Vinha andando pela calçada em minha direção num dia de semana, esvoaçante em um vestido florido. A pele clara reluzia quando os raios de um majestoso sol de verão tocavam seus braços, sua fronte, seu colo. Seu cabelo negro brilhava em meio aquela luz.

Meu coração batia forte a cada passo que dava em sua direção, ao tempo em que meu desejo por ela crescia e a angústia de não saber como abordá-la, como interceptá-la em meio aquela multidão de sombras e vozes me consumia. Quanto mais me aproximava dela, mais medo e angustia sentia, apalermado, atônito por não saber como chamar sua atenção... em não me deixar passar despercebido... em como fazer para segurá-la em meus braços...

Seu andar era como passos de balé. Antes de cruzar com ela cheguei a sentir o seu perfume. O mais doce dos aromas. O perfume único que só a mulher desejada tem. Vi seus olhos irradiando doçura e meiguice. O leve contorno dos lábios perfeitos e carnudos. Os seios uniformes e firmes. As unhas delicadamente pintadas ornando suas mãos ocupadas com os livros da faculdade. As pernas brancas e bem torneadas. A sandália rasteira protegendo seus delicados pés.

Confesso. Não consegui resistir. O impulso que senti foi que me lançou a fazer aquilo.

Quando estava a menos de meio metro a sua frente, já transpirando de amor e desejo, trancei propositadamente as minhas pernas e cai estatelado no chão.

Resultado da queda: Mandíbula e clavícula fraturadas. E um doce, cheiroso e mais maravilhoso afago que algum homem já sonhou em sentir. O afago das mãos de Anete. Dócil como uma princesa, ela se ajoelhou junto a mim, tomou minha cabeça em seus braços e disse, cantando, que estava tudo bem, que eu iria ficar bem. Sua mão direita alisava minha fronte. Seus seios eram comprimidos pela minha cabeça e o seu hálito perfumado invadia minhas narinas.

Ela só tinha olhos para mim. E eu apenas tinha olhos para ela.

Melhor do que a ter em meus braços, eu estava em meio aos seus.

Graças a queda. Graças a dor. A dor que me trazia segurança. Que me trazia o amor.

Mas assim como está escrito que o amor dura enquanto arde, visto que é fogo, em relação a mim, a calcificação dos meus ossos acabou calcificando também o amor de Anete.

Ela ia me ver quase todos os dias depois que deixei o hospital. Na verdade eram duas vezes por semana. Tinha as chaves do meu apartamento. Levava sopas e iogurtes. Brincávamos de aviãozinho com a comida. Ela ria muito da situação. Dizia que tinha dó de mim; que a minha queda foi algo surreal. Eu brincava também. Dizia que queria torresmo, pular corda, nadar, beijar de língua. E ela sempre dócil como a primeira vez em que me afagou... dava-me carinho, dava atenção. Dava-me amor.

O amor que eu tanto queria e, que após estar me sentido melhor, procurei materializar. Numa tarde ainda em casa, mas já curado, agarrei Anete. Pus a prova que a minha clavícula estava novamente solidificada abraçando-a com força até fazê-la soltar um gemido... e os beijos desesperados, as mordiscadas leves e sacanas em seu pescoço não deixavam suspeitas quanto a cura completa da mandíbula.

Foi uma tarde de amor intenso. Dessas que a gente vê em filme, quando um casal se encontra, reluta dias e dias para se entregar ao amor e quando o faz acaba abalando as estruturas do quarto.

Fiz amor com Anete a tarde inteira. Nunca me esqueci. Do corpo dela. Do cheiro dela. Do gosto dela. Da sua experiência. Das suas taras. De como ela acabou com um tubo de chantily. Da corda com a qual me amarrou na cabeceira da cama. Das loucuras que fizemos.

Nunca me esqueci. A dor me havia dado tanto prazer que nunca mais me esqueci. De como foi boa aquela tarde de amor...

. Nem de como acabou.

Enquanto ela colocava suas roupas, disse de forma tão simples, de um jeito tão direto, de uma forma tão sincera, que eu não ousei interromper ou retrucar alguma coisa... disse adeus! Ela simplesmente se virou para mim e disse que era comprometida. Tinha uma filha pequena que fazia aulas de natação em um clube próximo da minha casa.

Por isso ia lá. Ficava comigo porque tinha a tarde livre, e porque não tinha nada melhor para fazer.

Confessou que estava atrasada com os trabalhos da faculdade do namorado, o pai de sua filha, desde que me conheceu. Esperou que eu me recuperasse para fazermos sexo. Estava a fim de dar uma variada. Queria apenas um sexo casual.

Foi bom. Ela disse que havia sido bom. Mas não queria mais. Não iria mais me ver. Foi bom. E adeus.

Quando ela saiu, bateu a porta. Um quadro pendurado na parede, com uma reprodução barata de uma das obras de Matisse, caiu no chão e se despedaçou. E eu continuei ali. Deitado na cama. Suado. Com o meu pau ainda doendo e com uma vontade louca de mijar. Fiquei olhando para o quadro quebrado no chão e me vendo na mesma situação.

Logo me veio aquela relação casual que todo bobo apaixonado faz. Quadro quebrado, coração partido. Mas eu não sentia o meu coração partido. Não estava sofrendo porque ela me deixou ou porque me tratou como um mero fantoche sexual. Eu já estava curado. Não sentia mais dor. Tinha gostado daquela atitude. Que bom seria se todos os relacionamentos fossem assim. “Você está machucado? Estou! Quer que eu te dê carinho enquanto você melhora? Sim! Já está melhor? Sente-se bem? Então adeus, eu já não te amo mais”.

Assim é que deveria ser. Por que um coração machucado, às vezes, não tem como se curar. Já um osso quebrado, uma cartilagem partida, até mesmo uma pele arrancada por algum motivo, tem como ser curado. O coração é mais difícil. É mais complicado.

Passei a encarar assim a vida. O coração não se cura. Por isso nunca me entreguei de peito aberto à paixão. Podia não preservar meu esqueleto, mas o meu coração nunca sofria.

Pernas, braços, costelas. As minhas paixões duravam exatamente o tempo que os ossos demoravam para calcificar. E isso nunca me preocupou. Eu seguia o lema: Mas vale uma tíbia quebrada do que um coração partido.

E durante alguns anos a minha vida afetiva foi assim. Alguns entorces, uma outra fissura, nada de mais grave. Nenhum relacionamento sério. Nenhum amor verdadeiro. Nenhuma concussão, trauma ou fratura.

Foi então que conheci Úrsula.

Uma mulher simplesmente estonteante e apaixonante. Um exemplo físico irrefutável de que anjos existem e algumas vezes vêem a terra para mostrar a nós, pobres mortais, a beleza da vida.

Ela era fantástica. Maravilhosa. Única. Fazia jus ao nome. Úrsula. É difícil você encontrar uma mulher com esse nome. Assim como é difícil você encontrar uma mulher tão bela: Ruiva, olhos cor de mel, alta, esguia, corpo perfeito, com um sorrido lindo, de um bom gosto em sem vestir e maquiar invejável, sem falar na postura sempre ereta, a voz macia e apenas um anel na mão. Um solitário de brilhantes no dedo médio da mão direita.

Foi casual nosso encontro. E mesmo assim ela me já deixou completamente apaixonado, fazendo com que eu abandonasse as minhas convicções de relacionamentos e descuidasse do coração.

Fui a uma entrevista de emprego em um prédio próximo daqui. Já estava atrasado. Vi o elevador fechando as portas e, ao invés de gritar para que me esperassem, resolvei enfiar o braço entre as portas. Não deu outra. O aço pesado acabou prensando a minha mão. Não parecia nada grave. Mas o suficiente para que a única passageira, Úrsula, ficasse apiedada de mim, pedisse mil desculpas e se prestasse a me levar até o ambulatório do prédio, onde ficou comigo... A cuidar de mim... A me amar.

Percebia nos fundos dos seus olhos o amor nascendo. O amor desabrochando. A partir daquela lesão da minha mão esquerda encontrei o amor da minha vida. A razão da minha existência. A minha alma gêmea.

Estava como me sentido no céu. Aquela sala branca, cheirando a álcool hospitalar e ela, a minha Úrsula, ao meu lado, lavando a minha alma com o mais puro amor. Apenas me olhado. Sem falar nada. Mas desejando tudo.

Até que uma mulher gorda e ranzinza, enfiada em um jaleco branco, surgiu por detrás de uma cortina e, enfaixando a minha mão, disse que eu não tinha quebrado nada. Era apenas uma luxação boba, e eu poderia ir embora. Assim, acabando com tudo, acabando com o meu relacionamento.

Lembro-me em ter perguntando nervoso: “Como assim acabou? Isso não pode acabar assim tão rápido” . A enfermeira não entendeu. Úrsula também não entendeu. Elas não entenderam que, apesar de não haver quebrado nenhum osso, eu estava apaixonado. A luxação não era boba. Infelizemente, eu havia quebrado o meu coração.

. Sem me tocar, sem me beijar, sem sequer perguntar se eu precisava de alguma coisa, Úrsula saiu do ambulatório pedindo desculpas pelo ocorrido e me desejando sorte, deixando-me largado, sentado na maca. Vi o meu amor flutuando pelos corredores apertados daquele andar. Lembrei-me da frase que até então achava imbatível: “Já está melhor? Estou! Então Adeus, eu não te amo mais”.

Mas eu não queria que acabasse. Eu queria mais. Eu queria Úrsula só para mim. Acabou porque eu não estava mais machucado de verdade? Pois bem.

Não tive dúvidas. Fui correndo atrás dela, gritando pelo seu nome. Antes que ela cruzasse uma pesada porta de madeira, me lancei de cabeça contra a porta, desesperado, como se estivesse mergulhando em uma piscina.

A última coisa que me lembro daquele momento foram os olhos de Úrsula se arregalarem, enquanto ela levava as mãos à boca. Depois disso não vi mais nada. Acordei dois dias depois em uma cama de hospital com traumatismo craniano. Abri os olhos. Procurei por Úrsula. A minha cabeça doía. Doía muito. Procurava com os olhos atônitos por Úrsula, mas ela não estava ali. Ela não estava ao meu lado. Cuidando de mim. Dando-me amor.

Depois de duas semanas recebi alta e recomendação médica de ficar em repouso. Fui direto do hospital para o prédio onde a havia encontrado pela primeira vez. Assim que desci do táxi a reconheci imediatamente entre a multidão andando em direção a uma estação do metrô.

Ela não andava. Bailava no ar. As pessoas ao seu redor não tinham cor. Não tinham forma. Via apenas Úrsula. Via apenas seus maravilhosos cabelos vermelhos a ondular em meio a massa marrom das cabeças das pessoas. Num gesto vago, ela voltou-se para trás e, mesmo a distância, vi seus olhos me chamando. Dizendo para que eu fosse atrás dela. Que ela iria cuidar de mim. Que ela iria me dar amor e carinho.

Sai correndo atrás dela. Quando a vi, já no fim da escada rolante, mais uma vez não tive dúvidas. Não tive medo da dor ou se algo mais grave poderia me acontecer. Gritei o seu nome a plenos pulmões. Ela se virou na minha direção. E quando vi seu rosto corado, contendo um misto de surpresa e encanto, joguei-me escada abaixo.

Sai rolando pelos degraus, batendo nas pernas de outras pessoas, calcando o corpo nos desníveis, até chegar aos pés de Úrsula. Dolorido, com três costelas, o ombro, o braço e o tornozelo quebrados. Mas feliz. Feliz por estar ao seu lado.

Ela esticou a mão para me ajudar. Foi algo simplesmente maravilhoso. O toque mágico daquelas mãos suaves parecia curar a fratura do meu ombro.

Mas ela não me curou. Na verdade se afastou de mim. De ambulância fui para o hospital. Sem ela. De lá, fui para casa. Também sem sua doce companhia. De molho em casa, com o corpo todo doendo, todo quebrado, querendo amor e carinho, fiquei sozinho, completamente sozinho. Apenas minha mãe ia me visitar. E sempre ralhava comigo porque eu não prestava atenção por onde eu andava, sempre caia e me machucava.

E eu ali na cama. Olhando para a pintura de Matisse sem a moldura de vidro encostada atrás da porta, e concluindo que a minha mãe tinha razão. Eu caia e me machucava. Eu sempre caia, me machucava e buscava amor e consolo. Mas acabei mesmo foi caindo nas artimanhas do amor.

Cinco meses depois fui novamente procurar por Úrsula. Eu precisava falar com ela. Precisava explicar o quanto eu precisava dela. O quanto eu a amava. O quanto eu a queria do meu lado. Cuidando de mim. Cuidando das minhas dores, dos meus ossos quebrados. Confessar, enfim, que eu precisava dela para cuidar do meu coração.

Fiquei esperando do outro lado da calçada. Ela saiu do prédio. Bela como sempre. Linda. Maravilhosa. Gritei o seu nome. Ela não me ouviu. Decidi atravessar a rua num ímpeto... e não vi um ônibus que vinha em minha direção.

Felizmente não aconteceu nada de mais grave. Apenas fratura do fêmur, do braço esquerdo e uma leve concussão do cérebro. Mesmo porque eu estou aqui e agora contando tudo isso para vocês. Depois desse dia nunca mais vi Úrsula. O tempo acabou curando minhas fraturas sozinho. Não me trazendo ninguém para perto. Fiquei bom. Acabou.

Agora eu só preciso curar o meu coração. Totalmente esmigalhado. Mas a dor que sinto é mais forte do que as outras. Nada dói mais do que a dor de um amor não correspondido.

Ah... Úrsula...

O toque delicado daquelas mãos parecia curar a fratura do meu ombro.

Nada dois mais que um coração partido.