Marcelo Almeida do Nascimento

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Neste blog você encontrará os textos originais dos meus projetos literários, peças teatrais, roteiros e apresentação de jogos de tabuleiro. osbatutas@yahoo.com.br

Escrever para quê?

O título acima faz parte de uma discussão que termina na seguinte conclusão: Ler para quê? Há muitos anos tenho desenvolvido minha teoria a respeito dos hábitos da leitura e do gosto pela literatura. Por isso estou voltando a usar este blog para discutir um pouquinho sobre a falta de leitura e o comprometimento disso na escrita. Afinal, para que escrever se não há ninguém para ler.



Roteiro Curta Metragem - Cinderela 4.4.

Roteiro criado durante curso de roteiro e direção no Instituto Planeta Tela. Detalhe: O tema para criação do roteiro era a palavras tênis.


CINDERELA 4.4

Uma versão descartável


Roteiro para Curta Metragem

Março/2006



* / *



Sobre um fundo preto, com letras cursivas barrocas em branco, lê-se: A PRINCESA.

Seq. 1 – interior. Dia. Salão de Cabeleireira.



Um acanhado salão de cabeleireira no centro de São Paulo. Paredes de cor azul, espelhos de vários tamanhos pendurados. Cadeiras estofadas e um ventilador completam a sala. O chão é de cimento, tonalizado de vermelho, com rachaduras. O teto é baixo, de cor branca, e com uma lâmpada incandecente pendurada apenas pelo fio elétrico. A cabeleireira é negra, quarenta anos, gorda e transpira por todos os poros. Sentado na cadeira, movendo a cabeça de acordo com os puxões da escova está Dennys, vulgo Gabryely Star, travesti. Frente a eles um espelho com o canto inferior quebrado. Pregado a ele se vê várias fotos da Madonna, alguns de Reinaldo Gianechini, Brad Pitt, Zezé di Camargo e Luciano e Antonio Fagundes; cartões de cabelereiro, números de telefone, cheques devolvidos e receita de bolo. Colado na moldura há figurinhas de super-heróis e outras como da Hello Kity. Sobre a penteadeira há vários potes de cremes, loções, tesouras, grampos, chumaços de cabelo, um telefone celular, um cinzeiro com cigarro aceso.

Cabeleireira - Ai, eu mesmo não gosto de funk, sacô? Não gosto. Podem dizer que eu sou metida, que eu tenho que gostar porque eu sou negona, que vim da perifa, que eu sou pobre, mas eu não gosto, tá ligado? Não gosto, mano. Não adianta. Esse negócio de Tati Quebra-Barraco, Bond do Tigrão, Tô-feia-mas-tô-na-moda, que Dako é bom, não faz minha cabeça não, tá ligado meu? E não é por causa da música, do pancadão, de dizer palavrão, palavra de dois sentido, essas coisas não. Prá você ver. A Madonna. Tá ligado na Madonna, né? Saca só. A Maddona tem uma música, a Like Virgin, saca qual é né? Aquela: Like a Virgin, thats is tan ta tan tan for time. Então, tá ligado? Tái, eu peguei a tradução da música, de uma cliente minha que viajou prá Miame, aqueles lugar lá dos Estates, aí ela me contou que a música é uma puta putaria, tá ligado? É a história de uma mina safada, que dá prá tudo quando é nego, até que achou um negão sarado, tipo pé-de-mesa, tá ligado? Aqueles que dá até nó no bicho, aí pegou esse negão e tomou um chá de pica tão forte, mas tão forte, que pareceu que era virgem de novo. Aí. Like a Virgin. Igual uma virgem. Pode uma coisa dessas? E é Madonna, sacô? Gringa, branca e cheia da grana. Não é só funk, pancadão, que é coisa feia. Música de gringo que a gente não entende a letra também é. Mas mesmo assim eu gosto da Madonna. Ela é a minha cara.

Dennys fica a olhar fixamente para o espelho.

Dennys - Eu adoro dançar. Adoro baile funk. Dançar funk é tudo, é o Ó! E queria tanto arrasar nesse baile de hoje, amiga! Dançar tudo. Igual a minha Diva. A minha rainha! Queria tanto botar pra quebrar, ferver, arranjar um bofe lindo e beijar muiiiito.

Cabeleireira: É como eu te disse. Eu não gosto desse negócio de baile Funk. Mas prá dançar... você conhece a simpatia da escova?

Dennys - Simpatia da Escova?

Cabeleireira - É. Simpatia das boa. É pra ser feita à meia-noite antes da primeira sexta-feira do mês.

Dennys - Nossa. É hoje! Pra que que é essa simpatia?

Cabeleireira - É do babado, minha Amapola. É do babado. É assim, você pega doze escova de cabelo com cabo de madeira virgem, quer dizer, sem usar. Pega um vaso de barro, farinha, mel, açúcar, uma rosa vermelha e um vela de sete dias verde. Ai vai até uma encruzilhada que tem uma loja chique de esquina. Mas a loja tem que ser chique, hein?. Quanto mais chique mais resultado dá. Aí você pega a farinha, põe no vaso, enfia as escova, rega com mel, açúcar e por fim põe a rosa vermelha entre as escova. Ai acende a vela e pede para Ogum e Oxossi abrirem seus caminhos e mentaliza o que você vai fazer, quem você quer ser, sei lá. Pronto. Você vai que vai arrasar, mona.

Dennys - Nossa! É tudo! Vou fazer isso. Vou ferver naquele baile. Você vai ver.

Cabeleireira - Só que presta atenção, hein? Não me passa perto de cemitério, de caixão ou de gente morta. Senão a simpatia quebra e você perde tudo. Tudo. Tudinho.



SEQ.2 – EXTERIOR NOITE. – Esquina da Rua Oscar Freire com Rua Haddock Lobo.



Um táxi pára na esquina. Salta Dennys, usando sandálias de tiras com salto alto, calça caçadora lilás com strass de cintura baixa e bem apertada, um bustiê amarelo, brincos estilo balangandã. Um outro travesti, também montado, fica no carro. Ele carrega os ítens para a simpatia em uma sacola. Passa a seguir os procedimentos da simpatia.

Taxista (gritando) - Puta que o pariu! Cêis vão fazer macumba logo aqui?

Travesti - Cala a boca! Não atrapalha senão a mandinga não sai.

Dennys reza.

Ai meu Pai Ogum, Ai meu pai Oxossi. Faz que eu seja a mais linda, a mais gostosa, a mais tudo do baile. Igual a minha rainha. Igual a minha Rainha. Igual a minha Rainha.

Travesti - Vai logo minha filha, senão a gente perde o baile.

Dennys entra no táxi e partem.



FAD OUT



Sobre um fundo preto, com letras cursivas barrocas em branco, lê-se: O PRÍNCIPE



SEQUÊNCIA 3 – INTERIOR. NOITE. TERRENO DE CANDOMBLÉ.



Um quarto de madeira, iluminado por tochas acesas nas quatro pontas. Chão de terra. Um homem japonês, vestido todo de branco, um lençol envolto na cabeça e usando colares de miçanga coloridas está sentado junto a uma mesa de fórmica, com búzios em cima, velas e flores. Fuma um charuto e está pensativo. Entra um homem branco, pouco mais de vinte anos, bigodinho ralo e cabelos penteados com gel. Usa uma jaqueta colorida, calça larga e tênis. Está nervoso e apreensivo. Faz uma flexão, beija mão do pai de santo e se senta. É Glaydison, funkeiro da zona sul.

Glaydison - A benção Pai Futaba!

Pai Futabá - Mizifim veio procurar pai Futaba, né? Pai Futaba sabe de tudo. Pai Futaba vê tudo nos búzio. Mas Pai Futabá só escuta depois de vê dinheiro, né?

O rapaz tira uma nota de cinquenta reais do bolso e entrega ao pai de santo que o coloca dentro de uma gaveta.

Pai Futabá - Agora sim, né? Agora Pai Futaba vê, tudo, sabe tudo e també escuta, né? O que que Mizifim procura.

Glaydison - Ai pai Futabá, a parada é a seguinte: e que eu tô no ramo da música agora, tá ligado? Tô com umas gravações aí, umas participações ali e agora eu vou estrear num baile funk daqui a pouco, sacô? Só que, aí é que tá, eu não tenho nome artístico ainda. E eu não posso usar o meu, tá ligado.

Pai Futabá - E qual que seu nome?

Glaydison - Meu nome... meu nome é Glaydison Pai Futaba. Glaydison Aparecido da Silva. É ruim, né?

Pai Futabá - Ruim não, né? Bastante ruim. Mas vamo vê buzio, vamo vê. (Joga) Hummm... tem muita mais coisa nesse baile, né? Búzio fala que você vai se apaixonar.

Glaydison - Se apaixonar? Eu? Quando?

Pai Futabá - No baile. Mizifim vai se se apaixonar pela dançarina mais bonita do baile. Uma estrela vai aparece e você vai cair aos pé dela de tão apaixonado. Mizifim vai ser conquistado pela estrela. (ri).

Glaydison - Nossa! Verdade! Mas e o nome? Eu não quero namorada. Eu quero um nome pro show.

Pai Futabá - Bom... nome não saiu, mas Pai Futaba vai dar um nome procê, nê? Um nome muito bom.

FAD OUT



SEQUÊNCIA 3 – INTERIOR. NOITE – BAILE FUNK



Sobre um fundo preto, com letras cursivas barrocas em branco, lê-se: O BAILE



Salão de baile. Um globo luminoso gira no alto de um salão não muito grande, com luz negra e néon azul, onde várias pessoas se acotovelam em coreografias defronte a um palco de madeira. Em cima dele vê-se pick-ups, caixas de som, microfones, canhões de luzes coloridas e muita gente cantando e dançando.

Em meio ao som que toca, um homem negro, trajando uma camiseta de time de basquete americano surge no palco. Toma o microfone.

Apresentador - Taí comunidade. Agora vamo apresentar mais uma mano daqui do gueto, que é mano que nem nóis e tá arrebentando aí agora. Com ocês o nosso irmão, nosso brother, o DJ K-PORRA.

Surge então o DJ, Glaydison. Esta vestido como da outra vez, mas agora usa um boné escuro com as inscrições em dourado “EU COMI O CU DO CARA”. Recebe o microfone e começa a cantar uma música funk.

Close em uma boca feminina sem dentes que esgoela: VAI K-PORRA!

Enquanto isso no salão, um clarão vai se abrindo. Ao som da música do DJ, uma mulher se sobressai entre as demais, dançando de um jeito frenético, mas ao mesmo tempo sensual. Está vestindo sandálias de tiras com salto alto, calça caçadora lilás com strass de cintura baixa e bem apertada, um bustiê amarelo, brincos estilo balangandã, jogando os negros cabelos de um lado para o outro. Bastante maquiada, sedutora e provocante, todos se impressionam com ela não apenas pela dança. Ela tem o rosto parecidíssimo com o da atriz Cláudia Raia.

O DJ K-PORRA se impressiona com a dançarina e fica a olhar para ela extasiado. Ao fim da sua música, ele deixa o palco apressado e empurrado as pessoas tenta se aproximar daquela mulher excepcional.

Do lado direito do palco, um homem negro, gordo, vestido como os rappers americanos está conversando com uma garota negra, bastante maquiada e com roupas curtas, quando leva um empurrão do DJ K-PORRA. Ele pára de conversar e olha para trás com cara de poucos amigos. Acaba confundindo a pessoa que o empurrou com um homem negro, vestindo como um rapper americano também, porém bem mais magro e de cavanhaque, que o encara e dá início a um empurra-empurra, até que os dois sacam suas armas e disparam um contra o outro.

Ao ouvir o som dos tiros, a dançarina sensual se assusta. Em meio a confusão uma voz masculina diz: Zeraram um! Zeraram um!

Close na dançarina. Ouve-se a voz da cabeleireira ecoando a sentença da simpatia. A dançarina sai correndo em meio ao tumulto. Na confusão, sua sandália do pé direito cai.



SEQ. 4 – EXTERIOR. Noite – Frente do Baile Funk



Em meio a luzes dos carros de policia e ambulâncias, com os corpos dos mortos sendo carregados pelo serviço funerário, o DJ fica encostado junto a porta do salão, olhando com ar tristonho a sandália em suas mãos. Fica assombrado ao ver que o número da sandália é 44, mas logo depois volta a ficar com ares apaixonados. Até que percebe debaixo do solado uma pequena abertura, e de dentro puxa um pedaço de papel, onde se lê:





GABRYELY STAR

Oral é meu forte. Anal é meu prazer.

Av. Indianópolis, 2424 AP. 42– Planalto Paulista-SP

Os olhos do DJ brilham e sorrindo ele sai correndo do local.



SEQ. 5 – EXTERIOR DIA – FRENTE DO PRÉDIO

Frente de prédio. O DJ está junto a portaria, segurando a mesma sandália. Fala ao interfone, se anuncia e o portão se abre.



SEQ.6 – INTERIOR. DIA. APARTAMENTO Nº 42



O DJ pára junto a porta que indica o apartamento 42. Respira fundo, toca a campainha e a porta é aberta.

O DJ entra. No apartamento há seis pessoas. Todas são travestis. Algumas estão montadas, outras fazendo a sobrancelha, num canto da sala, uma está depilando as axilas com gilette. Ele entra e fica com a sandália na mão.

Glaydison – Oi! Aí, dá licença. Alguém daqui usa 44?

Travesti 1 – Aqui é só 45 prá cima, meu bem!

Travesti 2 – Pezinho de bicha é grande pra dá chute na bunda do bofe, queridinho!

Risadas.

Travesti 3 – Ei! Eu conheço essa sandália! É da Gaby! Perái que eu vou chamar ela.

Segundos depois surge Dennys. Está usando um robe bege surrado com o nome de motel meio apagado. Usa um tênis All Star vermelho completamente encardido. Na cabeça, uma touca térmica protege seu cabelo.

Glaydison (respirando fundo. Olhos arregalados) – Você... você que tava... você que é o dono, quer dizer, a dona dessa sandália?

Dennys – Não sei... pode ser que sim, pode ser que não...

Travesti 3 – Só tem um jeito de descobrir, bofe! Bota a sandalhinha no pezinho dela, bota! Vem aqui Gaby, senta aqui nesse banquinho

Um tanto contrariado, Glaydison se ajoelha aos pés de Dennys e tenta desamarrar o tênis O laço é encardido e o nó apertado. E ele é obrigado a usar a boca para desfazer a amarra. Após um certo esforço, ele consegue tirar o calçado e fica ligeiramente grogue ao sentir o forte odor de chulé do pé de Gabryely. Acaba desmaiando.

Travesti 4 - Por Cristo, paz e caridade, bicha! Que animal cê matou e jogou ai dentro menina?

Travesti 5 - Porra meu! Pode cuidar da alma porque seu pé já tá fudido.

Ao recuperar a consciência, o DJ procura entre os olhares aflitos dos travestis Dennys. Ao encontrá-lo, se levanta e diz:

Glaydison - Mina. Tô a fim de te conhecer. Desde aquela noite no baile fiquei parado na sua.

Dennys (demonstrando timidez) - Nossa! Brigada!

Glaydison - E aí? Quer dar um role comigo, um chopinho, quem sabe uma prainha...

Dennys - Por que? Vai me enterrar na areia?

Glaydison - Não, não. Vou atolar!

Se abraçam em meio a ovação dos travestis.

Entra a música do DJ Bola de Fogo.



CRÉDITOS FINAIS.